Uma aventura com cunho nacional subiu ao palco do Teatro Nacional de São Carlos. A ascensão e a decadência do banqueiro Santiago Malpago desenharam a caricatura das convulsões sociais e financeiras do século XXI e trouxeram a este mundo lírico uma invulgar actualidade.
O realizador João Botelho recebeu o convite e aceitou entrar nestas areias movediças com aquela ousadia que a vida traz. “Há uns anos, quando fiz a adaptação de Frei Luís de Sousa, Quem És Tu, Paolo Pinamonti era ainda director artístico do São Carlos e desafiou-me a encenar uma ópera. Mas achei que não estava preparado… Hoje já tenho idade para não ter vergonha. Para ter muita lata.”
Em 1994, no âmbito da Lisboa – Capital da Cultura, já se tinha atrevido a filmar uma pequena ópera de António Victorino d’Almeida. Ficou adormecida uma vontade de explorar.“No Filme do Desassossego, encomendei ao Eurico Carrapatoso uma ópera com cerca de dez minutos, que filmei ao ar livre na Serra de Sintra. A Morte de Luís II da Baviera é um texto maravilhoso, muito romântico. Queria provar que a língua portuguesa não é só fado, é também canto lírico.” A construção de raiz de Banksters, tomando como suporte o idioma de Camões, colocou-o ainda mais disponível para o desafio. “Nós temos vogais fechadas e muitas consoantes, mas isso não é um problema, é uma grandeza. A língua portuguesa é muito melhor do que se pensa e pode ser cantada. Pode e deve.”
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Um trabalho de três intensas semanas que teima em não ter fim e que deixou uma ou duas borboletas no estômago. “Já estou velho para nervos. Mas confesso que estava muito nervoso no ensaio geral. Havia ainda falhas, coisas que não estavam bem conseguidas. Estava com algum receio.” Neste que talvez se afigure como o projecto mais difícil da sua carreira, os dias de ensaios correram a uma velocidade vertiginosa. Tecnicamente, o cineasta sentiu nos ombros o peso hierárquico de uma estrutura como a do São Carlos. “Tentei ‘baralhar’ um bocado as regras… mas é preciso obedecer a algumas.” E contou com a preciosa assistência do compositor Nuno Côrte-Real, que, ao piano, já lhe tinha apresentado a música e convocado o espírito de Banksters.
Inicialmente surpreendido por algum vocabulário, depressa viu a coerência das palavras de Graça Moura enquanto tudo se edificava. “A figura do Bobo, do Régio, também estava a brincar com a ditadura portuguesa. A ideia, acho eu, era a de que Salazar se fosse embora, que pedisse perdão e que talvez tivesse direito ao céu. E hoje é sobre os banqueiros, que deviam estar todos presos e não estão.”João Botelho não poupa elogios a todos os parceiros nesta odisseia, incluindo o desempenho “extraordinário” do jovem maestro Lawrence Renes. “É um miúdo com grande talento”.
Esta cómica tragédia vive de um núcleo de protagonistas eficazes na execução, com relevo para Sara Braga Simões, que veste com firmeza a voluptuosa mundivivência de Mimi Kitsch, mulher do presidente do banco. “É uma experiência muito exigente. Tenho umas centenas largas de marcações.” Todos vagueiam num movimento agitado, dentro dos limites impostos numa ópera. Foi suplementar a tarefa de dirigir actores que, ali, não podem deixar de ser cantores. “Eles são julgados pelo canto, pela pose, só que isto tem muita acção e representação. Pude potenciar a grandeza que têm para poderem estar à vontade. Mas eu sou pelo lema dos fuzileiros: se fosse fácil estariam cá outros.”
Podia ser a história de um filme, mas não é. O palco, com a sua finitude, transforma-se num espaço enorme, “sem rede”, como se de um plano geral se tratasse, em que não é possível repetir, fazer takes, voltar atrás, editar. O encenador não se coibiu, contudo, de ‘brincar’ com toda esta coisa séria, trazendo a lume a sua própria e inevitável identidade. “O meu filho Francisco foi meu assistente e, a certa altura, disse-me: «Isto parece um filme teu»… Se uma pessoa está cá é para fazer o que sabe.”
A luz é direccionada. “O escuro no meio é uma tentativa de criar profundidade”. Em cima da secretária, uma vigorosa abóbora simboliza o poder e universo do banqueiro. O sexo e a traição da mulher assumem a forma de uma melancia. Sombras chinesas que definem atmosferas de escritório dão lugar a centenas de pares de sapatos femininos – construídos em papelão e coloridos individualmente. “O cinema é uma arte de vampiros”, diz o cineasta sobre uma certa impureza e falsidade da Sétima Arte, que ‘suga’ elementos a outras para poder existir.Para Banksters recorre ao ‘seu’ Caravaggio, que tanto aprecia, e a vários elementos pictóricos. “Fui ‘roubar’ ao Goya o Voo das Bruxas, ao Richter os vitrais de Colónia, brinquei com Méliès, com o início do cinema, Darth Vader, Máscara-de-Ferro… A minha ideia não é ilustrar, é criar situações em que aquilo possa ser possível.”
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Seria um sonho que Banksters conhecesse a itinerância nacional que teve a sua ode a Fernando Pessoa, mas talvez toque levemente a utopia. “É um dos erros da ópera. Neste momento, temos um grave problema em Portugal, que não tem a ver com a Cultura nem com as Artes mas sim com a Educação.” O realizador de O Fatalista defende que uma criança de seis anos pode e deve descobrir a música clássica, assim lhe seja dada a oportunidade. “Nos liceus de França, tornaram obrigatório o visionamento de 50 filmes por ano, para dizer aos miúdos que o Cinema não começou com Tarantino. Há uma história da Música e há uma história do Cinema.” Nesta e noutras áreas,os estímulos para a aquisição de competências assumem clara relevância nas camadas mais jovens. “Eu noto, pelos meus filhos, que o ensino está cada vez mais degradado. Houve um nivelamento por baixo, em nome da democracia. Mas quando levei o Filme do Desassossego aos cineteatros do país encontrei turmas notáveis e descobri que tudo dependia dos professores. Os professores são o mais importante no mundo.”
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Esta inerente subjectividade deve chegar através de uma nova e regular produção; não basta reciclar encenações e engrossar um repertório já existente, porque “a Ópera morre se a tratamos como um Museu”. E recusa os preconceitos associados a esta arte. “Transformaram-na numa coisa de elites e de ricos. É caro, sim, mas duas horas antes do início custa um terço do preço. Há descontos para escolas. Acho uma estupidez esta ideia de que somos todos iguais e de que todos temos o mesmo acesso à cultura geral. Nas salas de cinema, se eu ganhar 10 dos 200 mil espectadores é maravilhoso! Aqui é a mesma coisa.”
A simetria, essa, estará sempre patente. Apesar de todas as diferenças, o Cinema e a Ópera coexistem e procuram algo em comum: tirar o espectador da sua zona de conforto. “Gostava que as pessoas saíssem do Banksters e fossem fazer qualquer coisa diferente do normal. Dançar, escrever, pintar um quadro… o que for. Que apele a algo que não tenha a ver com o rasteiro quotidiano. É essa a função da Arte: inquietar.”
ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 3 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).