João Domingos Bomtempo – Sonatas (I): Philippe Marques (piano). Melographia Portugueza 10 (2014)

É sem hesitação que podemos colocar, na História da Música Portuguesa, a figura de João Domingos Bomtempo (1775-1842) como primeiro grande cultivador das formas clássicas, particularmente da forma sonata. Contribuíram justamente para este epíteto as suas sinfonias, os concertos para piano e orquestra, as obras de câmara para grupos variados e, sobretudo, as sonatas para piano. De todos estes conjuntos é, todavia, seguramente este último o menos divulgado, o que, a par de grande importância histórica e da intrínseca qualidade musical, o decidimos registar para o selo discográfico Melographia Portugueza, dedicando o décimo CD do catálogo desta colecção ao primeiro de uma série de quatro CDs que perfarão a integral das sonatas de Bomtempo.

Não são conhecidos, nos nossos dias, muitos pormenores relativos à formação do compositor em Lisboa, enquanto jovem. Sabe-se que pertenceu à Irmandade de Santa Cecília, actuando essencialmente como coralista, e que, com dezanove anos, substituiu o pai como oboísta principal na Orquestra da Real Câmara, um mês após a morte deste. É, neste contexto, deveras surpreendente o sucesso que Bomtempo rapidamente atinge em Paris, onde se instala a partir de 1801, publicando logo em 1803 a primeira sonata para piano, numa das mais influentes casas editoriais da cidade, e em cujas mais importantes salas inicia uma importante actividade de concertista. As primeiras obras escritas ou publicadas em Paris revelam desde logo um conhecimento considerável das práticas musicais mais actuais no centro da Europa, patenteando influências sobretudo de Ludwig van Beethoven e Muzio Clementi, em simultâneo com uma admirável exploração das novidades mecânicas dos pianos de então, incluindo passagens de extremo e refinado virtuosismo, que reflectem um seguro talento enquanto pianista.

A Grande Sonate pour le Forte Piano, Op. 5, que inaugura este CD, insere-se neste contexto do período parisiense da vida de Domingos Bomtempo. Pela circunstância insólita de a partitura desta obra ter estado perdida durante mais de um século – vindo a ser descoberta apenas em 1992 –, foi a única de entre as sonatas de Bomtempo que não figurou na gravação histórica da pianista Nella Maissa, tendo ficado excluída daquele que, até à data, constituiu o mais importante esforço de divulgação e descoberta da obra de Bomtempo. É aqui também que o compositor explorou pela primeira vez em grande escala um dos processos técnicos que mais o viriam a caracterizar enquanto compositor, a unidade e a coerência temática procurada através de uma assinalável capacidade de variação motívica.

Progredindo no alinhamento deste CD, encontramos An Easy Sonata for the Piano Forte, Op. 13, e Two Sonatas for the Piano forte, Op. 15, ambos os Opera publicados já em Londres, aproximadamente em 1813. A primeira é uma sonata de contornos simples, quer no plano técnico e formal, quer no da própria narrativa musical, e composta num contexto pedagógico; é inclusivamente dedicada aos discípulos. Nas duas obras seguintes, encontramos uma escrita sóbria e de carácter mais sólido, de serenidade tipicamente beethoveniana. A estrutura concisa da Sonata Op. 15, n.º 2, apresentada em dois andamentos sem interrupção, aproxima-se inclusivamente, pela liberdade e fluência do discurso, de uma fantasia.

Através destas quatro sonatas (num total de doze) que constituem o primeiro CD da integral das sonatas para piano de Bomtempo, é possível fazermos uma primeira aproximação, convenientemente alargada, a este grande segmento da obra do autor, onde, em nossa perspectiva, se encerram também as páginas mais surpreendentes que nos deixou.

Seguindo uma perspectiva de enquadramento do próprio objecto que sempre orientou as edições da colecção Melographia Portugueza, foi à obra de Domingos Sequeira, contemporâneo de Bomtempo e considerado igualmente uma das figuras-chave na transição entre o Neoclassicismo e o Romantismo em Portugal, que recorremos para a capa deste disco. É possível ver, tanto na capa como na contracapa, pormenores de um óleo sobre tela intitulado Alegoria à Constituição, de 1821, actualmente preservado na colecção de pintura do Museu Nacional de Arte Antiga.

CD disponível aqui.

(autoria do texto partilhada entre Duarte Pereira Martins e Philippe Marques)

Sobre o autor

Duarte Pereira Martins

Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.

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