A caleidoscópica produção artística de Jocy de Oliveira desafia a percepção até mesmo dos mais familiarizados com as estéticas vanguardistas. Isso porque a brasileira constantemente dissolve os limites entre as linguagens artísticas, especialmente em suas óperas multimídia, conceito-chave para uma nova percepção sobre a criação operística contemporânea.

Liquid Voices – A História de Mathilda Segalescu é sua mais nova ópera multimídia. Estreada em 2017 no Sesc 24 de Maio em São Paulo, foi concebida para funcionar em diferentes plataformas. Por um lado, uma ópera em seu habitat – o palco (embora flertando com todo tipo de aparato tecnológico, como video mappings e música mista); por outro lado, utilizando a linguagem cinematográfica como meio de expressão. A criação para cinema contou, como locação, com o antigo e prestigiado Cassino da Urca no Rio de Janeiro – ou melhor, com suas ruínas. Subvertendo a linguagem operística, dissolvendo os limites entre música, teatro, artes visuais e cinema, e propondo reflexões sobre temas delicados, o filme Liquid Voices – A História de Mathilda Segalescu foi estreado na mostra competitiva do importante International Film Festival em Londres, arrematando o prêmio de Best Sound Design.

A obra

Liquid Voices – A História de Mathilda Segalescu traz assuntos caros à sociedade contemporânea, difíceis de encarar. Partindo do histórico naufrágio do Struma, um navio em condições precárias que levava 700 judeus em fuga do Nazismo da Europa para a Palestina, Jocy de Oliveira adiciona um ponto de vista ao fato, ao criar a personagem de Mathilda Segalescu. Envolta em uma aura de mistério criada por um belíssimo jogo de transparências, projeções, luzes e sombras, Mathilda Segalescu é uma cantora romena que, a bordo do Struma, tem no piano seu único companheiro, perseguida pela controversa paixão de um pescador árabe, que entretanto só é capaz de vislumbrar sua imagem espectral.

“Saindo da Romênia, o já danificado Struma, sem motor, pede um SOS à Turquia para rebocá-lo até o porto de Istambul. Mas os turcos estabelecem uma quarentena total de dois meses: ninguém entra, ninguém sai. Os suprimentos rareavam, novamente rebocado a mando do governo da Turquia é deixado a deriva em pleno Mar Negro, quando acaba afundando, atingido por um torpedo russo.” (ABM press release)

Através da história, Jocy de Oliveira traz à baila questões ainda à flor-da-pele. Por um lado, as disputas entre árabes e judeus pelo território palestino – e, consequentemente, o genocídio de inocentes –, por outro, o grande fluxo migratório que vem ocorrendo sobretudo na Europa e o desumano tratamento dispensado a essas pessoas. Fato histórico, conflitos atuais…

A compositora

Jocy de Oliveira nasceu em Curitiba, Paraná, em 1936. Construiu uma sólida carreira como pianista, sendo aclamada no exterior ainda muito jovem como promissora intérprete da música contemporânea. Tocou sob a batuta de Igor Stravinsky, estreou obras de John Cage, Olivier Messiaen, Iannis Xenakis, dentre outros. Por si só, um fato raríssimo entre artistas brasileiros, e que pode ser apreciado no seu livro Diálogo com Cartas, vencedor do Jabuti em 2015, o mais importante prêmio de literatura do Brasil. Com a colaboração do italiano Luciano Berio, compôs Apague meu Spotlight em 1961, que contou com a atuação dos consagrados atores Fernanda Montenegro e Ítalo Rossi e direção de Gianni Ratto. Antes, em 1959, Jocy estreava como compositora com o invulgar disco A Música Século XX de Jocy, em interessantíssimo e irônico diálogo com a Bossa Nova, lançada no mesmo ano com o disco Chega de Saudade de João Gilberto. De suas nove óperas, oito estão gravadas em DVDs distribuídos pela NAXOS Video Library e Sesc-SP.

Premiada como compositora, cineasta e escritora, Jocy de Oliveira segue lutando pelo reconhecimento e visibilidade das artistas brasileiras. Em sua página oficial no Facebook, ela questiona:

“Curioso, na minha longa vida profissional recebi dois prêmios que muito me emocionaram: um troféu como cineasta – Winner do London International Filmmakers Festival pelo meu filme Liquid Voices – a história de Mathilda Segalescu, (2019) e o Prêmio Jabuti como escritora, maior prêmio de literatura do Brasil pelo meu livro Diálogo com cartas (2015). Não posso deixar de mencionar também o prêmio como compositora da Fundação Guggenheim em New York (2005), enquanto no Brasil minha música tem passado um tanto à margem… Será que é uma questão de linguagem ou o gênero tem algum peso?” (Jocy de Oliveira, 15 mar. 2019)

 


 

Ficha técnica | Liquid voices – a história de Mathilda Segalescu

Filmado em 4 k nas ruínas do Cassino da Urca, Rio de Janeiro, 2017/2018

Direção, roteiro, música original com eletroacústica – Jocy de Oliveira

Assistente de direção – Bernardo Palmeiro

 

Elenco

Gabriela Geluda, soprano – Mathilda Segalescu
Luciano Botelho, tenor – pescador árabe

Ensemble Jocy de Oliveira:

João Senna – viola / Peter Schuback – cello / Aloysio Neves – violão e guitarra elétrica / Rodrigo Cicchelli – flauta / Paulo Passos – clarineta, clarineta baixo e sax / Sara Cohen – piano e tambura / Siri e Joaquim Abreu – percussão / Marcelo Lima – difusão sonora

Produção: Spectra
Produção executiva: Visom

 

Edição – Bernardo Palmeiro e Jocy de Oliveira
Direção de arte – Fernando Mello da Costa
Assistente de direção de arte – Edward Monteiro
Assistente de direção cênica – Isabella Lomez
Figurino – Ticiana Passos
Assistente de figurino – Tiago Ribeiro
Maquiagem – Rafael Fernandez
Direção de movimentos – Toni Rodrigues
Iluminação – Renato Machado
Engenheiro e áudio (gravação, mixagem e masterização ) – Leonardo Alcântara
Direção de fotografia – Ricardo Kimus
Créditos – Gerald Khoeler / Chapa Estudio
Pós produção de imagem – André Tavares
Efeitos visuais – Gerald Khoeler
Foley artist – Guido Pera
Cameramen – Gaucho / Dodi Agostinho / Pedro Iorio
Best boy grip – Mauro Moreira
Best boy gaffer – Edson Melo
Produção executiva – Claudio Lino da Costa e Mariana Chew
Assistente de produção – Mara Vieira
Designer gráfico – Lu Martins
Administrador – Patricia Ivie

 

Agradecimentos especiais:

SESC-SP / Bogliasco Foundation / Instituto Europeo di Design – Fabio Palma Carlos Andrade / João Dantas Leite / Fredrik Kirsebom / Eleazar de Carvalho Filho

 

Patrocinadores:

MultiRIO / BTG Pactual / Prefeitura do Rio de Janeiro

Sobre o autor

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Fernando Magre é doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Música pela Universidade de São Paulo (2017), Especialista em Regência Coral (2015) e Licenciado em Música (2013) pela Universidade Estadual de Londrina. Desenvolve pesquisa sobre a obra de música-teatro do compositor brasileiro Gilberto Mendes. É colaborador do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Lisboa), onde realizou parte da pesquisa de Mestrado entre 2016 e 2017, sob supervisão da Prof. Doutora Maria João Serrão. Como musicólogo, tem participado de conferências no Brasil e no estrangeiro, com destaque para as conferências do RIdIM de 2015 (Columbus) e 2016 (São Petersburgo), Conferência Essence and Context (Vilnius) em 2016 e EIMAD – Encontro de Investigação em Música, Artes e Design (Castelo Branco), em 2017.

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