O compositor José Lopes e Silva, pioneiro da Música Contemporânea em Portugal e um dos mais destacados membros do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa desde a sua fundação, morreu hoje, em Lisboa, aos 81 anos.

Nascido em 1937, em Calvelo (Lafões), Lopes e Silva é autor de vasta obra instrumental, composta entre a década de 1970 e os dias de hoje, onde as obras para viola a solo ocupam um lugar preponderante, mas onde se encontram também obras de câmara, obras vocais, música electroacústica e obras de teatro musical.

Lopes e Silva estudou viola com Emilio Pujol, no Conservatório Nacional de Lisboa, onde foi ainda discípulo de Fernanda Chichorro. Em 1959 e 1960 frequentou os cursos de Andrés Segovia, em Santiago de Compostela, com bolsas de estudo do Instituto Cultural de Madrid e da Fundação Calouste Gulbenkian. Fixando-se no Brasil a partir de 1962, fez carreira com o violão e ensinou nos Conservatórios de São Paulo. Tratam-no por Professor Lopes, o português. Regressando a Portugal, a partir de 1970, dedicou-se ao estudo da música contemporânea e das novas correntes musicais. Estudou com Jorge Peixinho, Álvaro Salazar, Luís de Pablo e Filipe Pires. Em 1973, integrou como Professor o Conservatório Nacional de Lisboa, onde leccionou até 2000. Juntamente com Clotilde Rosa, Maria João Serrão e Carlos Franco, fundou o grupo Quadrifonia, que apresentou numerosas estreias das suas próprias composições.

Isaías Sávio e José Lopes e Silva (fotografia: arquivo de Lopes e Silva)

Gritarrista e manipulador de som, como gostava de se apresentar, por ocasião dos seus cinquenta anos de carreira (e 75 de vida), foi-lhe dedicado o ciclo Guitarríadas XXI, que passou por Lisboa, Cascais, Estoril e Santarém. As obras de Lopes e Silva encontram-se parcialmente editadas em disco (Portugalsom, Discoteca Básica Nacional, 1987/1995) e têm sido objecto de estudos académicos nos últimos anos.

O velório de José Lopes e Silva realiza-se amanhã, 25 de Janeiro (sexta-feira), na Igreja de Santo Eugénio do Bairro da Encarnação, em Lisboa. No sábado, será celebrada missa às 9h15, seguindo-se o funeral, no Cemitério dos Olivais.


 

Por ocasião da celebração dos 50 anos de carreira de Lopes e Silva, em 2012, a Glosas publicou uma entrevista a José Lopes e Silva, intitulada “Lição sobre uma forma de estar na vida”, que hoje recuperamos em sua homenagem.

Vou começar pelo tradicional: como apareceu o gosto pela música?

Com os pássaros numa quintarola, no Calvelo, na região de Lafões. As outras aldeias eram a três ou quatro quilómetros de distância, de maneira que por todo o lado havia animais: patos, galinhas, pintassilgos, rouxinóis, cucos, rolas, vinte e quatro horas por dia, em todas as estações, quer eu quisesse, quer não. Nasci no meio disso tudo, só saía para ir à escola e voltar, não havia luz eléctrica, não havia nada. À noite era outra sinfonia com os grilos, corujas, mochos, cães, e as vacas com fome e com sede. Havia sempre som à minha volta, cânticos de toda a espécie: o vento, a chuva, as trovoadas de Maio. A minha educação musical era a água, a luz, o som. Tudo o que me rodeava. Semeava alimentos e também tratava dos animais. Ia para a serra com o gado, desde pequenito, depois acompanhava a música das bandas. Todo o mundo cantava nas terras, os meus irmãos cantavam, assobiavam… 

E a guitarra como aparece?

Com catorze anos vim para Lisboa trabalhar na confeitaria dos meus avós e havia lá muitos clientes que gostavam muito de fado e de cantar. E iam para o escritório tocar e cantar. O José Nunes, o Castro Bota… Eu comecei também a ir. E comecei por aí. 

Portanto já sabia tocar quando começou a ter aulas?

Eu não posso dizer que já sabia tocar… Comecei a tocar os dois instrumentos, a guitarra portuguesa e a viola, vendo os outros tocarem. Ia aprendendo de ouvido. (…) Entretanto tinha um papagaio em casa e ele cantava, cantava muito. 

Cantava? Acha que os animais cantam, que fazem música?

Bem, este papagaio imitava tudo. Mas veja, o ser humano também não cria nada. O ser humano imita, imita tudo. Imita-se a si próprio. E o Totó também. Ouvia e repetia. Desde o cão, o gato, o canário, as crianças na rua, as buzinas dos carros, tudo… Tudo afinado, ouvido absoluto! Ele imitava todas as buzinas dos carros que subiam aquela rampa. E tudo de cor: não tinha partitura!

[…]

Conheceu Jorge Peixinho ainda em São Paulo?

Sim. Na Casa de Portugal. Por acidente. Como lhe disse, tudo por acidente…

Não me diga que esbarraram um no outro!

Quase! Eu ia a subir as escadas e ele vinha a descer. Foi fazer umas conferências. E eu tinha ouvido que um português chamado Jorge Peixinho ia dar umas conferências na Universidade de Artes e Comunicações. Mas ninguém sabia quem era, nem o que era música de vanguarda. Então comecei a ter conhecimento da Escola de Viena com os músicos de elite da vanguarda. E ainda há poucos anos tinha terminado a minha carreira de coralista a cantar a Missa em dó maior de Beethoven. Até cheguei a fazer cursos de música sacra…

Mas vê distinções na música? Isto é música antiga, isto é música de vanguarda, isto é Beethoven?…

É tudo música. Quando me levanto de manhã aparece-me logo um destes amigos [aponta para os CDs espalhados]. Eu chego, lanço a mão… e sai o que sair. Não quero saber quem é. Sei que tudo é maravilhoso. Hoje foi o Ligeti, que foi meu professor também, não sei porquê, em Darmstadt. Depois penso: “Isto não é música, isto é som, que está num CD…”. Música era quando o Ligeti tocava. Ou o Satie. Agora o que eu ouço, de manhã, quando chego à sala, não é música, é som.

Não são compositores…?

Não, o que eles fazem é brincar com o som. Agora se lhes der o nome de música e músicos, isso é outra coisa.

Mas foi isso que fizeram todos, desde sempre. Os gregos, os romanos, Bach, Beethoven.

E isso continuarão a fazer eternamente. Agora se o jogo lhe continuar a chamar música… Música concreta é música? Ou é ruído? Não é feita de ruídos?

Mas não é tudo música? Ou, perdão, som?

Esse é que é o problema. Chamam a tudo música. Então a que é que chamam som? Não se pode fazer música sem som. Aquilo é música ou é som? Qual é a música e qual é o som? Eu tenho de saber, não posso morrer estúpido! 

E como era em Portugal, com “os da vanguarda”?

Eu era muito amigo da Constança Capdville; tínhamos a mania de brincar ao teatro musical. E eu toquei todas as obras que tinham guitarra e não só. A Constança gostava de improvisar e gostava da minha figura. Dizia-me: “Tenho uma obra nova, não sei se vou pôr guitarra, mas preciso de ti para tocar tímpanos e cantar e assobiar, e depois bates com o pé no chão…”. E depois com as fitas magnéticas ainda era outra história…

Como viveu o 25 de Abril?

Estava no Grupo [de Música Contemporânea] e, naquela altura, como sabe, havia imensas dificuldades. Aquilo foi uma luta tremenda, de sobrevivência. E acabou por ser também um espaço de resistência, com os concertos, o Jorge Peixinho com aquela euforia toda, e todos nós a apoiá-lo na mesma direcção, até que chegou o 25 de Abril. Mas de 1970 até 1974 foi duro, muito duro! O Jorge Peixinho era um louco que quebrava os pianos todos, eram os clusters, gritos e murros no piano, na guitarra, aquelas músicas esquisitas que ninguém entendia e obras doutros artistas plásticos…, e depois éramos “os comunistas”!

Como é que o público reagia às obras apresentadas pelo grupo?

O público foi aderindo gradualmente. Como nós, independentemente da Gulbenkian, também fazíamos outras coisas noutros espaços que foram aparecendo… E eu tinha outro grupo, o Quadrifonia, que incluía canto, flauta, harpa e guitarra. Fizemos a estreia nacional das Folksongs de Stravinsky. Era eu, a Maria João Serrão, o Carlos Franco e a Clotilde.


Notícia em actualização.

Sobre o autor

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Estudou cravo, órgão e música antiga em Lisboa, exercendo intensa actividade, quer a solo, quer com agrupamentos de música antiga e orquestras. Licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estudou Filologia Clássica e em cujo Centro de Estudos Clássicos é investigador. Prepara actualmente a primeira tradução portuguesa das Cartas de Plínio. Integra a Direcção da revista 'Glosas'.