A propósito d’O ROMANCE DO GRANDE GATÃO
conto musical de Sérgio Azevedo
sobre conto homónimo de Lídia Jorge
Esta não é a sua primeira incursão pelo universo infantil, já tinha escrito O Grande Voo do Pardal. Teve de encontrar um código diferente?
Eu sou espontânea nessa área, não tenho um saber acumulado mas devo dizer que não me pareceu difícil. A suposição de que se está a falar para crianças pressupõe que se regresse a um olhar primitivo que temos dentro de nós, como se descobríssemos a vida pela primeira vez. Acho que todos temos essa capacidade de ficar desprevenidos perante a realidade, de dar valor a detalhes que se perdem, mais tarde, quando somos adultos. O adulto tem um mundo pragmático, em que as trocas têm bastante de comércio, fazem-se no domínio da utilidade, sempre com uma finalidade própria. Se nos imaginarmos de novo desprendidos dessa espécie de ciência sobre o mundo pragmático do adulto, torna-se simples. Só escrevi dois livros para crianças, mas o que fiz foi, pura e simplesmente, imaginar que me sentava a contar uma história para os meus dois afilhados, que eram pequenos na altura em que escrevi o primeiro. Pus-me ao nível deles. E resultou naturalmente.
É preciso conhecer bem as crianças para lhes escrever uma história?
É preciso deixarmo-nos contaminar por elas. O conhecimento é sempre muito difícil, exige uma reflexão. E talvez não seja a reflexão em torno das crianças que mais interessa, mas sim contaminarmo-nos com a sua linguagem, sobretudo com o seu estado de pré-ciência, em que têm a ideia de que “a Lua é a mãe do Sol”… As crianças têm relações antropomórficas muito primitivas, em que todo o mundo é interpretado em termos de sentimentos, de afectos, de relações à semelhança de uma família. O que é o mundo da Poesia? É isso mesmo, esse traço pueril. Há uma teoria bastante interessante que é a de que nós que vamos deixando sempre activas várias camadas sobrepostas: o espírito mágico da infância; o espírito romântico do adolescente; o espírito filosófico próprio do pré-adulto; e, finalmente, aquilo que faz o nosso mundo adulto, em que criamos um envolvimento protector para não nos sentirmos penetrados pela dureza da realidade, não deixarmos que o afecto nos destrua. Segundo essa teoria, quando queremos voltar para trás, podemos fazê-lo e manter novamente esses vários percursos. É como se pudéssemos escavar na nossa arqueologia. Tenho pena de não ter mais tempo para escrever para crianças…
Mas está nos seus planos?
Sim, já escrevi várias pequenas histórias. Gosto bastante de imaginar para as crianças.
Pelo que disse, concluo que aconselha esta leitura a qualquer adulto.
Sim, acho que faz bem aos adultos lerem as histórias infantis. Permite regressos e, ao mesmo tempo, permite vibrar com a alegria perante as coisas. Podem ser situações muito pueris mas imaginá-las como que nos “lava” os olhos. Renascemos.
[…]
Quais as suas preferências musicais?
Gosto de jazz. E gosto dos simbolistas, dos barrocos. A música é tão vasta… Gosto muito das experiências que são étnicas e eruditas ao mesmo tempo. Por exemplo, a mistura do tango com a música erudita, aquilo que o Yo-Yo Ma faz com o violoncelo. Gosto da ligação da música africana com Bach, o caso da Lambarena.
Agrada-lhe a fusão entre a Palavra e a Música?
Acho que há todo um campo de experimentalismo que se pode fazer, sobretudo neste momento em que os géneros se confundem e que as palavras muitas vezes ocupam novos lugares na nossa vida, ao longo do dia. Há um tempo atrás fiz uma experiência dessas com o maestro Cesário Costa, sobre a perspectiva feminina, chamada Palavras Cantadas. Escolhi árias com vozes de mulheres e pus em relevo as palavras, para fazer vibrar outra vez o poema, porque muitas vezes ele “desaparece”. Quando se ouve, por exemplo, a ária de Carmen… l’amour est un oiseau rebelle… nós conhecemos a música, mas a verdade é que não temos bem a noção da letra, não absorvemos a sua mensagem. Neste caso,o poema continuou activo, tem elementos vivos. Esta experiência não sei se a fiz bem, hoje faria de outra maneira, mas penso que há todo um caminho que pode ser explorado nesse sentido.
As referências musicais percorrem, de alguma maneira, as páginas dos seus livros?
Percorrem. Muitas vezes não são só as eruditas. No meu último livro, A Noite das Mulheres Cantoras, Mahler está muito mais presente do que aparece no livro. Eu gosto muito do Mahler, acho extraordinário. Talvez as pessoas da minha geração gostem muito daquela sua melancolia, e talvez também de toda a sua história, a situação de incompreensão que houve em torno dele. Mas este livro está cheio de referências ao Mahler, mesmo quando ele não está lá. Sobretudo determinados andamentos de A Canção da Terra estão muito presentes. Pelo menos na minha cabeça, ainda que possa não estar muito claro no livro.
Terá acontecido algumas personagens suas terem sido contaminadas pelos seus gostos musicais, não necessariamente do campo erudito.
Claro. Num outro livro, Combateremos a Sombra, tem muito a música da Diana Ross e do grupo inicial que ela formou. Para trás há um outro, O Vento Assobiando nas Gruas, que tem muito de música pop contemporânea. E este último tem imenso da música dos anos 80. Porque eu gosto de escrever sobre figuras arrancadas da sociedade comum. Gosto de transfigurar o contemporâneo, as figuras comuns, do quotidiano, acho encanto nessa proximidade. Gosto de escrever em torno daquilo que é a alegria dos jovens, e a sua decepção também. E, naturalmente, todo esse tipo de música acompanha os sonhos destas gerações, que me são também contemporâneas. Os Pink Floyd e os Rolling Stones estão muito presentes. Muitas das minhas personagens ouvem a minha música, ouvem a música que eu ouvi ou que estou ouvindo. Acho que acontece um pouco com todos os escritores, que acabam por transferir para as personagens aquilo que é a sua própria vida. Nós também escrevemos para… (pausa) Para não nos contarmos a nós próprios… Mas deixamos elementos, “gatos escondidos com os rabos de fora”…
Acha que o seu público fiel já a “conhece”?
É muito difícil percebermos quem é o nosso público fiel. Sabemos que quando vamos ao encontro dos leitores – nas sessões de lançamento, universidades, livrarias, bibliotecas – aparecem pessoas que se dizem seduzidas pelos livros, mas depois não sabemos se são fiéis ou não. Acho que os leitores, primeiro, querem saber se vale a pena comprar um livro meu. Ao mesmo tempo, é agradável saber que há, digamos, um “luta” comigo, esta sensação de que há uma exigência e de que não sou incondicional. Os leitores agem comigo como se estivesse sempre a estrear-me. E isso é interessante porque, de certa forma, também me liberta, descompromete. Mas, sim, existem muitas pessoas curiosas sobre os meus livros, querem saber o que escrevo e que proposta tenho para lhes dar.
O Romance do Grande Gatão pode trazer-lhe novos e diferentes leitores?
Traz jovens leitores. E que crescem muito rapidamente…
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Pelas suas palavras, o Romance do Grande Gatão não podia ser outra coisa que não fosse uma história de amor...
(Risos) E é uma história de amor, de muitos por um gato e de um gato por muitos… Sabe que essa história é inventada a partir de um gato real, o mais lindo que vi na minha vida. O meu vizinho, no Algarve, tinha um gato listado, cinzento e cor-de-laranja, com uma cara redonda, redonda, redonda, parecia uma boneca, era lindíssimo! Mais tarde, fiquei a saber que o gato tinha fugido e que tinham desaparecido todas as suas fotografias. Foi um desgosto enorme. Mas reconstituí de memória. Se está morto fi-lo ressuscitar; se foi para fora fi-lo regressar… E depois coloquei-o naquela vizinhança conturbada – uma outra história que conhecia de duas famílias, uma africana e outra portuguesa. A isto tudo juntei as romanzeiras da minha mãe. E assim criei um espaço por inteiro. Com os desenhos da Danuta, que são maravilhosos, há um território e uma atmosfera que, a partir de agora, existem. Isso é que é bom nas histórias.
Que comentários ouviu por parte das crianças?
Muitíssimos. De adultos também, mas sobretudo de muitas crianças, que quiseram saber tudo sobre o Gatão. Mas é preciso não lhes contar tudo, as crianças não gostam da construção da história, gostam de encontrar a história como um facto inteiro, uma realidade autónoma, com a sua coerência própria. E fizeram muitas, muitas perguntas, sobretudo sobre a questão da liberdade do gato. Porque é que fugiu, porque é que não foi tratado, porque é que voltou manco. Esta questão aparece-se-lhes como um problema de existência.
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ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 3 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).