Breve reflexão sobre os desafios da programação de música erudita contemporânea
Pelo facto de ter residido em Lovaina, e daí me deslocar com frequência, o desafio proposto por esta edição foi o de tentar refletir por breves palavras sobre dois panoramas culturais contemporâneos (Portugal e a Bélgica) que, embora inseridos na mesma geografia europeia, apresentam características muitíssimo distintas. Qualquer discussão sobre a fragilidade estrutural das opções tomadas em matéria de política cultural, a escassez dos investimentos público e privado e a precariedade profissional em Portugal, ainda que provável, seria francamente desmoralizadora. Da mesma forma, uma análise que porventura se arriscasse em considerações críticas no que diz respeito à qualidade das produções ou da prestação dos seus profissionais apenas serviria para alimentar narrativas, pouco honestas, que optam por justificar a debilidade do setor alegando uma pretensa falta de competitividade. Assim sendo, e tendo por base a experiência e o pensamento mais recente, a discussão centra-se na problemática da música contemporânea e nalguns dos desafios que se colocam na sua programação.
É comum considerar-se que a adesão e o consumo cultural estão intimamente ligados à expressão de uma identidade individual. Assim, as escolhas do sujeito contemporâneo (nomeadamente as do criativo) são orientadas segundo um critério pessoal, sem que estes se revejam na necessidade de enquadrar, de acordo com os seus hábitos de consumo, uma determinada categoria previamente estabelecida1. Para Richard Floridai, as divisões clássicas entre alta-cultura e as formas mais populares do género estarão, em tese, ultrapassadas por um espectador cujo gosto é comummente descrito como tolerante, aberto, eclético e desvinculado de quaisquer hierarquias pré-concebidas ou considerações classistas. A principal crítica a esta ideia tem sido desenhada a partir do pensamento de Pierre Bourdieuii, nomeadamente após a publicação, em 1984, do seu texto La distinction: critique sociale du jugement. Para este sociólogo francês, as preferências culturais (e principalmente o gosto) são, nada mais nada menos, que autênticas manifestações de classe.
“— Tanto para Pierre Bourdieu como Dave O’Brieniii (que mais recentemente abordou o tema), o universo da música erudita constitui um exemplo que facilmente ilustra a fragilidade das posições de Florida, em relação ao argumento de classe.” Ao longo do séc. XX, a música erudita (ou clássica, na sua designação mais comum) popularizou-se além das tradicionais salas de concerto, não só através da sétima arte, mas também da televisão. “Como nos é descrito por O’Brien, este facto resulta na impossibilidade de estabelecer uma ligação, imediata e rigorosa, entre o fenómeno em geral e a pertença a um determinado segmento da sociedade, por parte do público-ouvinte… A mesma situação já não se verifica quando se propõe a realização de um exercício similar, dentro dos próprios géneros e subgéneros musicais, mais especificamente entre a audição de sonoridades ligeiras por oposição a repertórios desafiantes2, — como, neste caso, o de música erudita de vanguarda3. Reflitamos descomprometidamente nos seguintes exemplos: (i) a maioria dos apreciadores da Sonata “ao Luar” de Beethoven terá dificuldades em nutrir o mesmo entusiasmo pela Große Fuge para quarteto de cordas da sua autoria; (ii) de igual maneira, a generalidade dos espectadores de La Traviata de Verdi dificilmente terá qualquer relação, ou muitas vezes sequer ouvido falar, de óperas mais recentes como Il prigioniero de Dallapiccola ou Luci mie traditrici de Sciarrino. Como é sabido, dentro do próprio universo dos melómanos (até mesmo dos intérpretes), o consumo e o entusiasmo pelas estéticas contemporâneas é bastante reduzido. Por conseguinte, torna-se necessário ir mais além do que simples adjetivações de classe, pelo que é pacífico afirmar que se trata de um fenómeno cultural de “nicho”.
No panorama da música erudita, é comum atribuir-se a ausência de empatia (ou recusa, em certos casos) entre o grande público e as composições contemporâneas em razão da estética e das abordagens de vanguarda, que têm vindo a ser adotadas desde o início do século passado — algo que não corresponde, inteiramente, à realidade. Infelizmente, veremos que o tema é bem mais complexo, relacionando-se não só com as opções tomadas por muito programadores, mas também em virtude de práticas institucionais e políticas culturais inadequadas. Desde o início do séc. XIX que, no contexto de concerto, a programação de música nova tem seguido uma tendência decrescente, em detrimento de uma clara preferência pela reposição de repertórios históricos7. As estatísticas indicam que no início desse mesmo período, 80% dos programas de concerto eram preenchidos com música de compositores vivos. Por volta de 1850 esta realidade altera-se drasticamente, verificando-se uma total inversão nos valores percentuais — cenário que, até hoje, se mantém inalterado5.
Os obstáculos adensam-se no momento de formular propostas e estratégias que permitam a criação de novos públicos, pouco ou quase nada familiarizados com o encadeamento histórico-musical que justifica e fundamenta a linguagem e as tendências do nosso tempo. Para Mark Gothamiv, qualquer reflexão frutífera em torno do fenómeno da música contemporânea e da sua programação exige que nos debrucemos, de igual forma, sobre os seus moldes de apresentação, nomeadamente no que diz respeito aos espaços performativos e às eventuais oportunidades que possam vir a ser criadas através de diálogos interdisciplinares. Chegados aqui, a reflexão abre-se, sendo oportuno questionar idoneidade desses lugares que, tradicionalmente, foram concebidos e permanecem associados à execução musical, tanto da perspetiva dos desafios impostos pelas próprias composições contemporâneas, como daquela que diz respeito à experiência efetiva dos espectadores e ouvintes.
Em 1977, a Universidade Católica de Lovaina (KU Leuven) promoveu a criação do STUK, um espaço cultural interdisciplinar intencionalmente concebido para uma abordagem híbrida entre três vetores da prática artística contemporânea: dança, imagem e som. Contudo, foi a partir do início da década de 80, sob a direção de Paul Keyskens, que o nome da instituição ganhou destaque, através do caráter arrojado e experimental das suas produções. Na sua história, importa relembrar a relevância do festival Klapstuck, por onde passaram nomes incontornáveis, muito especialmente na área da dança contemporânea, como o coreógrafo Merce Cunninghamv. Deslocado do seu espaço original por motivos de renovação, o centro cultural encontrou-se temporariamente instalado nos Studio Manhattan, mantendo uma atividade regular que é, maioritariamente, preenchida por três modalidades: instalação, música techno (em ambiente de diversão noturna) e performance. Mesmo fora do seu edifício original, o layout do local não foi descurado, pelo que a sucessão das salas segue a enumeração das disciplinas acima descritas, acrescentando-se uma zona de bar no espaço que, embora versátil, se encontra destinado à nightlife. O diálogo e o cruzamento entre géneros e práticas artísticas tem sido apontados pela academia6 como um dos caminhos possíveis para a criação de novos ouvintes, no que respeita à música erudita contemporânea7. No entanto, qualquer abordagem pluralista deve ser informada tendo presente as possíveis contradições que, normalmente, surgem de um cruzamento entre linguagens e universos pouco compatíveis ou até mesmo contraditórios.
Aqui, o interesse deve ir além de meras construções direcionadas a estabelecer uma ponte entre o passado e o presente. É neste contexto que tanto a performance e a instalação8 como a música techno aparecem: as duas primeiras enquanto modelos adequados à apresentação de conteúdo musical e a terceira, por sua vez, como sequência expectável de libertação progressiva. Tendo em conta o exemplo citado, o que nos preocupa, na realidade, é potenciar o diálogo e a coabitação entre exercícios e linguagens vivas9, na criação de ambientes equidistantes que possam ir ao encontro do público contemporâneo, num processo de negociação constante entre o desafio proposto pela música, a adequação do formato e a natureza do espaço performativo.
Notas
1 Esta visão é defendida por Richard Florida, na sua obra The Rise of the Creative Class, nomeadamente quando o autor apresenta a ideia de que as escolhas culturais do sujeito representam não só a expressão de uma identidade própria, como são reveladoras de um verdadeiro projeto criativo pessoal.
2 BOURDIEU, 1996, pp. 16-18.
3 O’BRIEN, 2014, pp. 64-65.
4 É importante recordar que, por volta dessa altura, muitos autores começaram a interessar-se na investigação e redescoberta de compositores do passado — o trabalho desenvolvido por Felix Mendelssohn (1809-1847) em torno da obra de J.S. Bach é prova disso mesmo.
5 GOTHAM, 2014, apud BURKHOLDER, Peter, “Museum Pieces: the Historicist Mainstream in Music of the Last Hundred Years”, in Journal of Musicology, n. º 2, 1983, pp. 115-134/WEBER, William, “Mass Culture and Reshaping of European Musical Taste, 1770-1870”, in International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, n. º 8, 1977, pp. 5-22.
6 GOTHAM, 2014, p. 44 (referência n.º 13) / FRODEMAN, Robert (coord.), The Oxford Handbook of Interdisciplinary, Oxford, Oxford University Press, 2010.
7 GOTHAM, 2014, p. 44, citando um artigo de Alex Ross, publicado no periódico inglês The Guardian a 28 de novembro de 2010 – “Why do we Hate Modern Classical Music”.
8 Observe-se, com especial atenção, o trabalhado multidisciplinar que tem vindo a ser desenvolvido por João Carlos Pinto, que tão bem ilustra estas possibilidades: www.joaocarlospinto.com (consultado a 21 de dezembro de 2022).
9 A escuta de obras como La lontananza nostalgica utopica futura de Luigi Nono, realizada entre 1988 e 1989, constitui um exemplo histórico do diálogo entre a música eletrónica e a composição erudita.
Referências
i FLORIDA, Richard L., The Rise of the Creative Class, Nova Iorque, Basic Books, 2019.
ii BOURDIEU, Pierre, Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste, (trad.) Richard Nice,
Cambridge/Massachusetts, Harvard University Press, 8.ª edição, 1996.
iii O’BRIEN, Dave, “Whose culture? Participation and consumption in contemporary life” in Cultural
Policy: Management, Value and Modernity in the Creative Industries, Londres, Routledge, 2014.
iv GOTHAM, Mark, “First Impressions: On the programming and concert presentation of new music
today.” in Tempo, vol. 68, n.º 267, janeiro, Cambridge, Cambridge University Press, 2014, pp. 42-50.
v POTTER, Michelle, “«A License to Do Anything»: Robert Rauschenberg and the Merce Cunningham
Dance Company”, in Dance Chronicle, vol. 16, n.º 1, Oxfordshire,1993, pp. 1-43.
Fotografia: Luka Bedoshvili