No passado dia 20 de Novembro, ao final da tarde, fui assistir a uma sessão musical de homenagem a Luiza Todi (1753-1833) no Grémio Literário, com música brilhantemente interpretada pela soprano Sandra Medeiros, acompanhada ao piano por um competente Francisco Sassetti e com apresentação e comentários a cargo de João Paes.

Um pequeno parêntesis para apresentar João Paes a quem não o conhece: foi director do Teatro Nacional de São Carlos entre 1974 e 1981 e Presidente da Juventude Musical Portuguesa, entre muitos outros cargos relacionados com a cultura musical portuguesa, em Portugal e no estrangeiro. Adicionalmente, colabrou com o realizador Manoel de Oliveira em sete dos seus filmes, entre os quais destaco Os Canibais (1988), um filme-ópera para o qual compôs música original.

Dizia eu que fui a este recital, levada pela homenagem a Luiza Todi, das poucas mulheres músicas portuguesas que, mais ou menos, permanecem na história e talvez apenas, ou certamente sobretudo, por ter sido internacionalmente aclamada como uma das grandes divas (pese embora o anacronismo do uso do termo) do seu tempo.

Quanto à interpretação, só tenho elogios a fazer, apesar de um ligeiro descontrole dinâmico de Sassetti, notado sobretudo nos momentos mais intimistas em que o som do instrumento não acompanhava em absoluto os técnica e expressivamente perfeitos piani e pianissimi de Medeiros. De acrescentar que o timbre desta ágil e muito expressiva soprano assenta maravilhosamente no repertório escolhido e brilha particularmente, devo dizê-lo, no texto italiano.

 

 

Não obstante, “She never told her love” foi, para mim, a interpretação mais emocionante do serão. Não exigindo tanta habilidade vocal quanto as outras peças, foi de uma riqueza expressiva magnífica, fruto não só da excelente técnica vocal e musical, como também do lado dramático de Sandra Medeiros, que leva cada peça até ao fim de forma coerente e investida, começando na respiração antes da primeira nota ouvida.

Passando para as intervenções de João Paes, além de parecerem desorganizadas e serem aborrecidas pela forma absurdamente lenta e pausada de falar, como quem precisa de pensar antes de articular cada frase – isto apesar de estar a seguir notas previamente escritas –, tiveram o seu quê de cómico. Ou, talvez deva dizer, de triste e preconceituoso, além de ter recebido muito do que Paes disse como extremamente ofensivo. Entre gaffes históricas e uma visão altamente romanceada da vida e carreira (assim mesmo, como dois planos separados e sem ligação um com o outro) de Luiza Todi, foi passada a imagem de que, pobre Luiza, cuja carreira estaria destinada a intervenções culturais menores enquanto actriz de teatro musical, deveu tudo ao marido, sábio violinista italiano que a guiou pela sua vida fora, servindo como seu manager e tomando decisões sobre a esposa que, enquanto mulher, o não saberia ter feito doutro modo.

Ao fim de alguns minutos percebi que valia a pena registar no meu bloco de notas algumas das palavras de João Paes. Fica aqui um pouco do que reuni:

 

D. Maria I, que era a rainha louca porque padecia de uma religiosidade muito… feminina.

Isto antigamente, quando os casamentos eram felizes, os filhos vinham de enxurrada. E foi o que aconteceu com a nossa Luiza: um por ano em 4 anos. […] Depois vão para Londres, mas em Londres há uma contenção. Eles [Luiza e marido] em Londres portam-se bem e não têm filhos. […] Depois vão para Paris e… era inevitável… em Paris teve o quinto filho!

O facto de ter tido o quinto filho em Paris e o sexto em Viena não lhe fez qualquer transtorno. […] Além do extraordinário dom vocal, a Luiza tinha também um extraordinário dom físico noutro sítio que lhe permitia desfazer-se do filho rapidamente e uma semana depois estar a cantar como se nada fosse.

A Catarina II não era muito dada às artes, mas era dada aos amores. E porque a Luiza era muito amorosa, muito sensível, a rainha apaixonou-se pela Luiza Todi. […] O que não quer dizer que tenham passado a actos directos e pouco aconselháveis. Não, era uma paixão de amizade. […] As más-línguas é que eram invejosas e tentavam manchar a reputação da Rainha.

 

A audiência, composta na sua maioria por pessoas maiores de 50 anos e de €50.000 na conta à ordem simbólica (na real não sei), acenava positivamente com a cabeça e até ria frequentemente – muito embora tenha ouvido duas respeitáveis madames dizerem uma à outra durante a palestra: “Ainda nem começou a música e já estou cheia de fome!”, ao que a amiga responde: “Também eu!”.

Também eu, fome de competência e responsabilidade.

 

Sobre o autor

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Helena Lopes Braga é doutoranda em Estudos de Género na Central European University,​ em​ Budapeste, Mestre​ (Excelente)​ e Licenciada​ (Muito bom)​ em Musicologia Históri​c​a pela F​aculdade de Ciências Sociais e Humanas da U​niversidade ​Nova de Lisboa.​ ​​Desenvolv​e ​i​nvestigação ​nos domínios da ​música, género, sexualidades e sociabilidades, e tem-se dedicado particularmente ao estudo de elites intelectuais e artísticas de mulheres durante o Estado Novo. Foi Vice-Presidente da SPIM, Sociedade Portuguesa de Investigação em Música e co-fundadora do NEGEM, Núcleo de Estudos em Género e Música, e do SociMus, Grupo de Estudos Avançados em Sociologia da Musica, ambos pertencentes ao CESEM, Centro de Estudos em Sociologia e Estética da Música.