Verdi e o seu Macbeth continuam a fascinar, e não deixa isto de me surpreender dada a mediocridade literária do libreto e dada uma música que, não obstante a beleza de uma dúzia de momentos – ou, sendo generoso, de uma vintena –, e não obstante a sua importância histórica no processo de transformação da ópera italiana daquela época e, mais concretamente, no contexto verdiano, parece-me ser, à luz da nossa contemporaneidade e entre tantas centenas de outros títulos já canónicos, um repositório pouco feliz de lugares-comuns.
Como não se pretende uma crítica à obra mas ao espectáculo, ultrapasso esta confissão inicial – e muito pessoal – para aplaudir, com agrado e regozijo, a segunda récita desta produção a que tive o privilégio de assistir no passado dia 23 de Fevereiro (a estreia deu-se no último Sábado, dia 21).
Macbeth, cantado por Àngel Òdena, foi correcto e minimamente convincente, mas não deslumbrou: pedia mais profundidade e mais contraste esta figura psicologicamente errante… Lady Macbeth, insidiosa e malévola, ganhou com a prestação de Elisabete Matos, por outro lado, uma densidade psicológica muito para admirar. Vocalmente pareceu-nos um tanto cansada, com um vibrato aqui e ali menos bonito e com as finalizações em registo agudo algo descuidadas; o exacto final da sua última intervenção, na ária Una macchia è qui tuttora, pareceu algo precipitado e causou estranheza. Não isto obsta a que tenha defendido o papel – e fê-lo incontestavelmente – com grande brilho e virtuosidade.
A surpresa da noite foi, todavia, o baixo Giacomo Prestia, no papel de Banco: voz cheia, segura, com brio e sentimento. É uma lástima que o personagem morra logo no II acto, frustrando-nos a vontade de o voltar a ouvir… Enzo Peroni, como Macduff, teve uma presença baça mas competente; João Oliveira (1.ª Aparição e O Médico) e André Henriques (Um criado e Um sicário) apresentaram-se com correcção e clareza. Marco Alves dos Santos, enquanto Malcolm, foi feliz e enérgico. Destacaria as intervenções imaculadas de Bárbara Barradas como Aia de Lady Macbeth.
Encenação (Elena Barbalich), cenografia e figurinos (Tommaso Lagattolla) e desenho de luz (Giuseppe Ruggiero), também sem deslumbrar e sem qualquer rasgo de génio, lograram ainda assim propiciar imagens bonitas – a fotografia final, por exemplo, em que Malcolm é coroado –. Houve soluções menos felizes: os espelhos quebrados, manuseados em palco por diversos elementos, feriram como flashes dolorosos o olhar do público – pelo menos o da plateia – dado o reflexo da luz de projectores sobre o palco… e uma falsa cortina (ou falso bosque?), em projecção digital, por sinal com muito má qualidade de resolução gráfica, trouxe qualquer coisa de amador ao aspecto geral de algumas das cenas. Pormenores que não perturbaram a coesão cromática do sombrio espectáculo e que não retiraram a graça e o (relativo) interesse da grande íris que percorre toda a ópera num exercício instigante de constante re-significação: um grande olho a que as bruxas recorrem para comunicar com forças mágicas, a mesa do banquete, até um poço ou espelho de água, quase baloiço às mãos do filho de Banco, uma lua estilhaçada em pedaços de espelho…
A direcção pareceu razoável; o coro soou muito bem (Patria oppressa!), aqui e ali desencontrado com a orquestra, que se apresentou globalmente escorreita e até brilhante, excepto quando a orquestração de Verdi a reduzia a apenas violinos e a acústica implacavelmente seca do teatro não ajudava a disfarçar a tibieza – em timbre e em afinação – deste naipe.