Na passada quarta-feira, dia 10 de Maio, Madalena Soveral apresentou-se em recital no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco, num programa que proporcionou ao público presente uma panorâmica sobre alguns dos mais interessantes caminhos da escrita pianística do séc. XX.
A noite iniciou-se com um raro exemplo da literatura pianística de Janáček: Nas brumas (V mlhách, de 1912). Desde início se percebeu que a intérprete iria enfatizar o ambíguo carácter que o compositor inscreveu na obra. Através da abordagem de Madalena Soveral, o público foi levado para as perplexidades da estética oscilante desta fase de Leoš Janáček: a procura de uma tranquilidade impossível, a busca ansiosa de uma contemplação apaziguadora, sempre perturbada pelos sombrios gestos pós-românticos que parecem brotar, sem tréguas, de forma inadvertida.
A inquietude, todavia, viria a tomar forma definitiva na peça seguinte: a Sonata op. 1 de Alban Berg. Madalena Soveral, uma das mais aclamadas intérpretes desta obra, permitiu ao público sentir toda a riqueza de cores e dolorosas emoções que a densíssima escrita contrapontística da Sonata encerra. Tudo foi claro, sem perder peso; tudo foi transparente, sem arriscar a superficialidade.
Após uma incursão numa obra de Helmut Lachenmann — Guero, de 1935 —, onde a exploração percutiva do piano pareceu antecipar as experiências sonoras da Nova Iorque dos anos 50 e 60, a pianista prosseguiu a sua viagem cronológica com as Cinco peças de George Crumb, de 1962. Nesta obra, foi especialmente tocante a forma como os recursos técnicos — tão marcados pelo modernismo — não se sobrepuseram ao carácter pós-impressionista, quase encantatório, da música de Crumb. Um deslumbramento de luzes e sombras.
Por fim, duas obras com electrónica em suporte fixo: Mosaic de João Pedro Oliveira, e Tombeau de Messiaen de Jonathan Harvey.
Na primeira, fomos invadidos pelo espanto: a quase inatingível consistência de escrita de João Pedro Oliveira revelou-se logo na primeira frase – uma teia de ideias musicais e acontecimentos sonoros, elaborados entre piano e electrónica com tal mestria e reciprocidade, que quase não acreditamos tratar-se de electrónica em suporte fixo. João Pedro Oliveira tem o bom hábito de nos surpreender, quer pela vivacidade e frescura da sua música — que nos faz imaginar frequentemente estarmos perante uma sessão de música de câmara — quer através da difícil arte da ilusão — que nos faz, em vão, procurar a fonte de manipulação de uma electrónica em tempo real que, na verdade, não existe.
A segunda, de Harvey, para além da impressionante viagem micro-tonal que nos proporcionou — em constantes estímulos a memórias de curto prazo, cheias de beleza, mas provocando uma estranha e insistente sensação de desconforto —, permitiu a Madalena Soveral exibir o seu total domínio sobre a partitura, sobre a técnica e a respiração da música contemporânea com electrónica, ostentando um verdadeiro virtuosismo do nosso tempo.
Numa noite chuvosa, a meio de uma semana atípica, não era expectável, à partida, uma enchente de público em busca das emoções e abstracções da literatura para piano do século XX. Apesar da irrefutável dimensão da intérprete anunciada, foi de facto uma sala pouco preenchida que teve o privilégio de navegar por esta viagem musical. O lastro cultural de uma comunidade, no entanto, não se faz só de casas cheias. Tratou-se, com efeito, de um importante momento para a vivência artística da região, que teve oportunidade de contemplar novos e, para muitos, inexplorados, horizontes, através das janelas que Madalena Soveral tão eloquentemente abriu.