Uma cidade estará apta para brincar
quando não tivermos de criar mais espaços específicos
para as crianças brincarem.

O processo evolutivo da maior parte das ciências ao longo dos séculos é um contínuo movimento de reavaliação e tabula rasa sobre o conhecimento construído e valente até então. É assim para a astronomia, tal como é para a geografia ou a matemática. Por vezes, é certo, surgem postulados que perduram através dos tempos e se tornam verdadeiros alicerces do conhecimento, como as teorias de Arquimedes ou as leis de Newton, mas o mais comum é o conhecimento revezar-se no lugar da actualidade. Nada deve ser certo para sempre nem aspirar a sê-lo, pois uma certeza, enquanto ponto de referência que está social e cronologicamente ancorada, também é transitória. Não se discute hoje a cosmologia medieval enquanto coisa fecunda e passível de gerar novo e válido conhecimento científico, porque desde há muito as observações telescópicas nos dão novas certezas.

O mesmo se passa com a cartografia quatrocentista ou a medicina do século XVII. Com as ciências ditas humanísticas, termo propositadamente lato que se tem ocupado das artes do pensamento e do pensamento sobre a humanidade desde que o homem é homem, dá-se o curioso e facilmente observável fenómeno de uma certa iteração periódica mais ou menos regular. Os principais e mais intemporais exemplos de humanismo, sendo aqueles que professam a valorização do indivíduo como condição para a valorização da sociedade, o espírito ecuménico e de concórdia social, de integração do conhecimento no processo de raciocínio e da curiosidade como meio de progresso (lembre-se sapere aude, a kantiana exclamação que remata conclusivamente todo o iluminismo), surgem como vagas. Não há século nem terra que passe sem eles, e é como se, ano após ano, coubesse ao pensamento humanista lembrar-nos que não somos apenas humanos, também somos pessoas, indivíduos, comunidade e sociedade. É assim que somos exortados ao mesmo espírito por Aristóteles, por S. Francisco de Assis, por Hannah Arendt ou por Luís Pacheco.

Uma após outra, revezam-se as vozes no apelo ao bem comum, procurado através do bem de cada um. É este o sentido da pólis aristotélica: o de um bem que é para todos, objectivado pelo sistema e pelos indivíduos que o compõem. E esse bem comum deve ser um estado de existência totalizante, onde coisa alguma será condição terminal para o bem-estar colectivo. É assim que o pensamento utópico avant la lettre que se desenha a partir dos antigos propõe um modelo de sociedade onde cada indivíduo faz uso da razão e da inteligência, cultiva o espírito e o corpo em partes iguais e desempenha o seu papel na defesa da sociedade.

Num modelo semelhante, que resta saber se algum dia atingiremos, não faz sentido separar ou isolar diferentes componentes da sociedade, uma vez que todos são ingredientes do mesmo bem-estar. Assim, aquilo que faz o cidadão artista deve estar ao alcance e ser do entendimento do cidadão médico ou do cidadão atleta. A doutrina divide-se, é claro, na interpretação desta proposta, e desde a velha pólis grega à igualmente velha revolução de Outubro, já assistimos a diversas tentativas de aplicação de modelos sociais teoricamente perfeitos.

Mas de que forma é que uma sociedade poderá ser, de uma vez por todas, um modelo onde não há centro ou periferia, cima ou baixo, privilégio ou exclusão?

Parece certo para o humanismo que esse é o objectivo, sendo apenas menos certo o caminho para o atingir. Em todo o caso, lá estão as sucessivas e retornadas vagas de pensamento, umas mais quiméricas, outras mais burocráticas, tentando juntar tudo e todos.

Pessoalmente, acredito nesta utopia. Acredito que o cidadão atleta tem o direito de se relacionar com o produto do cidadão artista e vice-versa. E mais, acredito que para que tal aconteça é necessário levantar certas barreiras invisíveis, mas palpáveis, que separam as águas.

O lugar da música numa comunidade pode ser um excelente barómetro social: de que forma é praticada, por quem, para quem, com que intuito, como é transmitida, aprendida e fruída? Vejamos um breve exemplo. No caso do ensino básico em Portugal, que se dá numa das fases mais importantes da vida das crianças e da formação de cidadãos a haver, a música tem o lugar de uma expressão que se vê incentivada pois privilegia processos de criatividade e entrosamento colectivo, para além de estarem amplamente comprovados os seus benefícios cognitivos na idade infantil. Em todo o caso, esta é uma expressão que se vê rapidamente abandonada pelo sistema, em detrimento de aprendizagens como serão a matemática, a história ou as ciências naturais, todas igualmente e inquestionavelmente fundamentais.

Mas a ideia de que certas coisas são expressão e outras aprendizagem subentende uma dicotomia que, embora tácita e implícita, propõe que uma coisa vale menos do que a outra, pelo menos nos termos da sua utilidade. É assim que, largamente, certas coisas se tornam desejável profissão, carreira e mester, enquanto outras se tornam desejável prazer, desafogo e escapismo. Em última análise, se perseguidas com o mesmo intuito, umas revelar-se-ão ilusão e as outras desilusão.

Tem sido assim ao longo de incontáveis séculos e é talvez por isso que ainda andemos a arengar no caminho para a sociedade ideal, porque o cidadão vai votar no cumprimento da sua cidadania mas não cultiva a música no cumprimento dessa cidadania. Porque o sistema de ensino promove a expressão musical pontual numa lógica de learn by doing, mas não promove uma relação fecunda e duradoura com a música e a sua fruição.

O erro está em assumir que ensinar é ensinar a fazer, e não ensinar a pensar sobre ou a viver com. Aprender música pode então traduzir-se num coro de sopros em flautas de plástico ou no entoar do dó-ré-mi, dispensando-se o verdadeiro cultivo da música ou a reflexão que dela parte. É assim que, enquanto não tivermos um ensino para a música e não da música, é impossível que o produto do cidadão músico esteja ao alcance de todos os seus concidadãos.

Podemos substituir música por qualquer aspecto ou disciplina do conhecimento, e teremos uma imagem verdadeira do estado da arte da sociedade da qual fazemos parte. E é desta forma que se torna lapidar a frase do pedagogo e ilustrador italiano Francesco Tonucci, ao propor uma cidade totalizante para a brincadeira das crianças, pois caso contrário a brincadeira nunca passará de uma expressão, reduzida a um lugar designado, estanque e isolado do resto da existência da cidade e dos seus cidadãos.

Originalmente publicado na revista GLOSAS 21


Sobre o autor

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Licenciado em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e em Direcção de Orquestra pelo Conservatorio di Musica Luca Marenzio di Brescia e Italian Conducting Academy em Milão, concluiu em 2018, com honras e enquanto bolseiro Eckstein e Fulbright, o mestrado em Direcção de Orquestra na Bienen School of Music, Northwestern University, onde foi aluno de Victor Yampolsky. Dirigiu e trabalhou com orquestras de sete países, e assistiu Christopher Rountree e Alan Pierson, entre outros. Em 2014, funda em Itália a Orchestra di Maggio, com quem se apresentou em várias cidades, e que foi objecto de um documentário e do apoio da Fondazione Torchiani. Em 2014, com os cursos “O que ouvir na música clássica?”, começou um percurso ligado à pedagogia e apreciação musical, com especial atenção ao pensamento contemporâneo sobre a Música, ao seu lugar na Cultura e à sua relação com as outras artes.