No último dia 15 de Novembro, teve lugar no histórico Cineteatro Ouro Verde de Londrina (Brasil) a estreia do espetáculo cênico-musical Morte e Vida Severina, pelo Grupo Vocal Entre Nós. Morte e Vida Severina é um poema dramático escrito pelo pernambucano João Cabral de Melo Neto em 1955, que retrata a tortuosa trajetória dos retirantes nordestinos que saem do sertão em busca de uma vida melhor na capital litorânea. Severino, antes de uma pessoa em si, é uma identidade quase anônima. Muitos são Severinos, iguais em tudo na vida:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Morte e Vida Severina é um clássico da literatura regionalista brasileira, e não é à toa que já contou com produções para diferentes mídias. No teatro, imortalizou-se em 1965 com a montagem do TUCA – Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, dirigida por Roberto Freire e contando com composições do iniciante Chico Buarque, dentre as quais a antológica Funeral de um lavrador. Em 1977, foi a vez de ganhar uma versão para cinema, com direção do reconhecido diretor Zelito Viana, e ainda uma adaptação para teleteatro da Rede Globo em 1981.
Apesar de sua ampla circulação, Morte e Vida Severina ainda não possuía uma versão para coro cênico. Nesta linguagem, diferentemente do teatro convencional, o enredo é praticamente todo conduzido pela linguagem musical, não apenas através de canto solo, mas sobretudo através do canto coral. Foi esta lacuna que o Grupo Vocal Entre Nós veio preencher. A diferença desta montagem está justamente na busca por contar a história através das potencialidades que surgem do canto coletivo. Há que se lembrar que Severino não é apenas um. As vozes de tantos Severinos se mostram nesse trabalho arrojado e inovador dentro do campo do coro cênico brasileiro.
Além de contar com arranjos de canções compostas por Chico Buarque e Airton Barbosa, o grupo se aventurou a composições próprias baseadas no texto de João Cabral de Melo Neto. Revelaram-se, assim, compositores londrinenses de grande expressividade, como Bruno Bazé, Flávio Collins e Mariana Sella.
Por ser uma obra amplamente conhecida, corre-se o risco de cair em lugares-comuns quando se opta por criar uma versão. Definitivamente, este não é o caso do trabalho do Grupo Entre Nós. A direção cênica do veterano Silvio Ribeiro foge dos clichês e parte em busca de uma profundidade interpretativa que emociona pela delicadeza e pela simplicidade: gestos contidos que potencializam a expressividade da obra. Além disso, musicalmente optou-se por expandir o ideário que se tem da Música Brasileira, especialmente nordestina. Claro que não poderiam faltar gêneros caros à nossa identidade, como o frevo, o baião e a quadrilha. Porém, o grupo atravessou esses limites e dialogou também com o universo da Música Erudita, operando uma ponte entre a religiosidade brasileira e o repertório sacro setecentista.
Isso pode ser observado em dois momentos: em A Anunciação (Bruno Bazé), quando é proclamado o nascimento do filho de José Mestre Carpina, abandona-se a rítmica brasileira para dar lugar a um recitativo ao estilo das oratórias barrocas, tendo uma viola caipira emulando a sonoridade de um cravo. Já no fim da peça, novamente somos colocados na presença da expressividade barroca, quando, numa fuga a quatro vozes à la Bach, a montagem se encerra brilhantemente.
Fuga é composição do violinista paraense Flávio Collins, que também é cantor e compositor no Grupo Vocal Entre Nós e que, com sua bagagem como músico de orquestra, acrescenta ao grupo um vasto conhecimento sobre a tradição da música erudita ocidental. A direção musical de Monique Kodama, que também canta, atua e toca flauta no espetáculo, mostra um trabalho cuidadoso que se percebe no equilíbrio entre as vozes, no preciosismo com as dinâmicas e num trabalho de técnica vocal que busca valorizar as especificidades de cada cantor. Isso foi reconhecido recentemente no CANTORITIBA – Festival Internacional de Corais de Curitiba, no qual o Grupo Vocal Entre Nós foi vencedor nas categorias Popular Avançado e Coro Misto, além de ser condecorado com o Prêmio Diamante, por alcançar a melhor nota entre todos os grupos participantes.
Há ainda que destacar o trabalho da produtora Thalita Alcântara, que deu todo o suporte para que este espetáculo se realizasse, partindo da elaboração e aprovação do projeto junto ao PROMIC – Programa Municipal de Incentivo à Cultura. Morte e Vida Severina foi capaz de encher todo o Cineteatro Ouro Verde – reaberto em 2017 após um grande incêndio que o devastou em 2012 –, raridade nesses tempos de ataque à Cultura em todo o Brasil. O reconhecimento do público londrinense corrobora a trajetória de sucesso que o Grupo Vocal Entre Nós vem trilhando ao longo dos últimos 8 anos.
Direção cênica Silvio Ribeiro
Direção musical Monique Kodama
Produção Thalita Alcântara
Identidade visual Nícolas Lopes
Fotografia Bruno Ferraro e Fábio Alcover
Assessoria de imprensa Marian Trigueiros
Sonorização Júlio Anizeli e Patrick Sagioratto
Assistente de palco Davi di Pietro
Iluminação Romildo Ramos
Projeções mapeadas Matheus Doninha
Elenco Monique Kodama, Mariany Figueiredo, Clara Striquer, Thabata Alvarenga, Mariana Sella, Marian Trigueiros, Thaís Regina, Isaque Ribeiro, Flávio Collins, Caco Piacenti, Washington Souza, Thiago Barcelos, Nícolas Lopes, Bruno Bazé
Adoro seus textos, Magre…