Vicente Lusitano é ainda uma figura enigmática na História da Música Portuguesa, assim como na própria Musicologia portuguesa em geral. O pouco que se sabe sobre a existência deste ilustre oliventino foi-nos transmitido através dos estudos realizados pela musicóloga Maria Augusta Barbosa (que lhe dedicou praticamente toda a sua carreira académica) e pelo musicólogo Robert Stevenson.

Lusitano foi autor de um livro de motetes, o Liber primus epigramatum, impresso em Roma no ano de 1551, e de um tratado intitulado Introduttione facilissima, et novissima, di canto fermo, figurato, contraponto semplice et in concerto, impresso pela primeira vez em Roma em 1553, com reimpressões em Veneza nos anos de 1558 e 1561. Estas edições (especialmente a segunda) asseguraram que o seu nome não fosse esquecido na História da Música Ocidental. É ainda atribuída a sua autoria a um Tratado de canto de organo, que sobrevive num manuscrito conservado na Biblioteca Nacional de França (F-Pn esp.219). Ali são dados vários exemplos musicais, de onde ressalta o exemplo n.º 164, a fólios 161-162, onde consta o motete Heu me Domine, como exemplo extremo da utilização do cromatismo. Este exemplo está associado ao capítulo sétimo, em que são tratados os três géneros da Música: diatónico, cromático e enarmónico. O tratado foi atribuído a Vicente Lusitano pelo musicólogo Robert Stevenson, tendo como base, entre outros aspectos, a concordância de praticamente todos os exemplos musicais com o tratado impresso em 1553. Após a gravação em CD pelo Huelgas Ensemble, no início da década de 1990, este motete passou a integrar um pequeno grupo de obras tidas como exóticas pelo ouvido contemporâneo, uma espécie de experiência composicional primitiva com uma microtonalidade e uma quase atonalidade resultante de uma dissonância descontrolada.

Ouvi pela primeira vez este motete cantado na Catedral de Évora em Outubro de 2010, durante um ensaio do grupo Huelgas Ensemble, dirigido por Paul Van Nevel, para o concerto que ali realizaram no âmbito das Jornadas Internacionais Escola de Música da Sé de Évora. Nesse momento, acabara de visitar o arquivo musical da Catedral e o edifício do antigo Colégio dos Moços de Coro (hoje transformado num interessante museu de arte sacra, onde estão expostos os tesouros da Catedral de Évora). Recordo o impacte que aquela música “estranha” teve no grupo que integrava e que nessa noite teve o privilégio de ouvir esta e outras obras de Nicolas Gombert, num belíssimo programa apresentado pelo grupo. Há alguns anos, o motete de Lusitano foi, finalmente, editado em partitura moderna e encontra-se disponível na série Polyphonia das Edições MPMP.

O compositor Vicente Lusitano terá nascido na vila de Olivença (então ainda território português) por volta de 1520 e morreu após 1561. Muito do que se sabe acerca de Lusitano provém do que sobre ele escreveu Diogo Barbosa Machado. De acordo com o autor da Bibliotheca Lusitana, Vicente Lusitano era natural de Olivença e presbítero do hábito de São Pedro, tendo ensinado com grande sucesso nas cidades italianas de Pádua e Viterbo. Lusitano é também referido por Barbosa Machado como mestiço, o que, todavia, não foi ainda esclarecido.

Publicou o tratado anteriormente mencionado, Introduttione facilissima, obra que foi traduzida para português por Bernardo da Fonseca e impressa em Lisboa no ano de 1603. Este tratado foi dedicado a Marc’Antonio Colonna, que aí aparece referido como “mio Signore”, sem, contudo, clarificar qual a relação do Autor com o Duque de Marsi, amigo da coroa espanhola e apoiante dos interesses desta contra a Santa Sé (receberia o título de Vice-Rei da Sicília por estes serviços), posteriormente consagrado como um dos heróis da Batalha de Lepanto. O livro de motetes foi dedicado a Dinis de Lencastre, filho de D. Afonso de Lencastre, embaixador português na Santa Sé entre 1551 e 1557. Na dedicatória, Lusitano elogia os conhecimentos musicais de Dinis de Lencastre, sugerindo-o também como patrono (embora se desconheça de que ordem), muito possivelmente tendo sido esta família a proporcionar a carreira musical do Autor em Itália. Esta relação com a casa dos Lencastre está muito presente no Liber primus epigramatum, avançando Robert Stevenson que o motete Quid montes Musae colitis seria dedicado ao jovem Dinis de Lencastre. O teórico Giovan Tomaso Cimello escreveu o epigrama que surge no livro antes das licenças. Cimello esteve ao serviço de Marc’Antonio Colonna, dedicatário do tratado impresso três anos depois. O livro de motetes fecha com um privilégio de impressão papal por dez anos, a ter efeito em todos os territórios onde as prerrogativas da Santa Sé fossem reconhecidas.

Sem qualquer razão aparente, por volta de 1561, Vicente Lusitano havia-se convertido ao Protestantismo, procurando um cargo musical em Estugarda, na corte de Christoph, Duque de Württemberg. Para isso, contava com o apoio de Pietro Paolo Vergerio, antigo bispo e conselheiro do Duque.

Vicente Lusitano é conhecido na História da Música Ocidental sobretudo pelo aceso debate teórico com Nicola Vicentino, do qual originou a publicação por este último de L’antica musica ridotta alla moderna prattica, em 1555. A polémica surgiu em torno de um motete, Regina caeli, interpretado na academia do palácio de Bernardo Acciaioli em Roma. De acordo com Vicentino, Lusitano afirmava que a música era exclusivamente diatónica. Vicentino contrapunha que, em geral, na música do seu tempo os genera cromático e enarmónico estavam misturados com o diatónico. O debate decorreu ao longo do mês de Junho de 1551. Um dos júris nomeados pelo Papa foi o teórico Ghiselin Danckerts (autor de um tratado que não chegou a ser publicado). Danckerts foi um dos jurados cuja decisão pendeu a favor de Vicentino. Robert Stevenson sugere que o motete cantado no palácio Acciaioli possa ter sido o motete Regina caeli que Lusitano inclui no seu Liber primus epigramatum. O autor adianta que o motete de Lusitano possui todos os ingredientes para ter despoletado a polémica, nomeadamente a presença de um acorde de Lá bemol muito pouco usual na escrita polifónica da época.

No que diz respeito ao motete Heu me Domine, se formos além do cromatismo e dissonâncias aparentes, não será difícil encontrar praticamente todas as características presentes no motete “clássico” do Renascimento. A obra encontra-se dividida em segmentos, cada um dos quais termina com uma cadência; existe imitação entre as vozes, mas um dos aspectos mais interessantes, a meu ver, é, acima de tudo, a forma como Lusitano conseguiu enfatizar o texto sem utilizar a dissonância, o recurso comum entre os compositores “clássicos” da Renascença. Começa pela forma da obra, em duas partes, característica do motete do século XVI. O texto de cada uma das partes está dividido em dois segmentos, com uma ou duas repetições em outros tantos pontos de imitação.

O motete abre com um ponto de imitação que, embora pejado de cromatismo, constitui um claro exemplo deste tipo de contraponto “clássico” da Renascença. O superius abre com o motivo cromático, associado ao texto “Heu me Domine”, que será imitado pelas restantes vozes. Segue-se o altus dois compassos e meio depois, a um intervalo de quinta inferior. O tenor imita o superius à oitava, o mesmo ocorrendo entre o bassus e o altus. Após este ponto de imitação inicial, surge um segundo ponto de imitação sobre o mesmo texto, onde é posto em prática o recurso de fazer entrar as vozes em camadas da mais grave para a mais aguda, uma vez mais, mantendo as relações de quinta e oitava entre as vozes. Outro recurso, dito “clássico”, utilizado por Lusitano é o agrupamento de vozes em bicinia (a um intervalo de terceira), o que acontece entre o altus e o tenor na primeira repetição do texto “misi at te Deus”, no final da primeira parte do motete.

O processo que Lusitano utilizou para destacar o texto é, na realidade, bastante simples: não podendo utilizar a dissonância ou o cromatismo, uma vez que estes recursos começam a ser dados a ouvir desde o início do motete, escolheu reordenar a textura vocal nos locais onde pretendeu pôr em evidência determinada palavra ou passagem do texto. Por exemplo, em “quando caeli movendi sunt”, o superius introduz este texto num cromatismo descendente, seguido pelo altus uma breve depois com o mesmo motivo, à distância de um intervalo de quarta. Esperava-se que o tenor seguisse com o mesmo motivo, imitando o superius à oitava. Porém, o tenor permanece em silêncio, entrando no final do compasso onde entrou o altus, com um retardo no compasso seguinte (Si bequadro contra Fá sustenido no superius), de certa forma, desequilibrando aquilo que seria expectável em termos auditivos. Nesta primeira apresentação do texto, a textura encontra-se reduzida a três vozes, entrando o bassus depois de as três vozes superiores terem apresentado o texto. O tenor funciona aqui como elemento desestabilizador de uma textura organizada devido à sua entrada contrastante com o cromatismo descendente em semibreves no superius e altus. O desequilíbrio proporciona que a voz do tenor seja perfeitamente perceptível, assim como o texto.

Em termos do sentido do texto que se encontra em ambas as partes do motete, a primeira parte contém um texto mais “pacífico” do que a segunda. Desta forma, encontra-se mais instabilidade, não só em termos cromáticos, mas sobretudo no que diz respeito à dissonância na segunda parte. Lusitano parece ter optado por um processo inverso no que concerne ao controlo da dissonância. Assim, será mais eficaz em termos analíticos encontrar pontos consonantes na vastidão dissonante. Um dos elementos localizadores desses pontos é, sem dúvida, o texto. Um desses exemplos é “ubi fugiam”. Para além de terminar o primeiro segmento de texto e, por conseguinte, uma candência em Lá, com respectivas consonâncias (a qual é reforçada pelo altus com um Dó sustenido), o próprio texto assim o sugere.

Desta forma, para além do manancial cromático e dissonante que compõe o esqueleto formal do motete Heu me Domine, é importante observar os pormenores menos óbvios numa primeira audição, mas que constituem características importantes na integração desta obra num contexto mais vasto. Este transcende os debates teórico-musicais quinhentistas, enquadrando esta obra, de certa forma singular, num processo de composição muito mais vasto que abrange todo o século XVI: em todo o caso, enquanto representante de um corpus musical dos muitos músicos portugueses que desenvolveram actividade fora de Portugal e cuja produção ombreou com muitos dos colegas de profissão com quem contactaram.


Referências bibliográficas

BARBOSA, Maria A. Vicentius Lusitanus: Ein portugiesischer Komponist und Musiktheoretiker des 16. Jahrhunderts. Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura/Direcção-Geral do Património Cultural, 1977

BARBOSA MACHADO, Diogo. Bibliotheca Lusitana. Tomo III. Lisboa: Na Officina de Ignacio Rodrigues, 1752

BLACKBURN, Bonnie J. “Lusitano, Vicente [Lusitanus, Vicentius]”. Oxford Music Online, <http://oxfordmusiconline.com> (Consultado 12-09-2018)

Canções, Vilancicos e Motetes Portugueses. Huelgas Ensemble, dir. Paul Van Nevel. Sony Vivarte 66288, 1994, CD

HENRIQUES, Luís (ed.). Vicente Lusitano: Heu me Domine. Polyphonia 16. Lisboa: Edições MPMP, 2013

JOAQUIM, Manuel. “Um madrigal de Vicente Lusitano publicado no Libro delle Muse”. Gazeta Musical, 13-14 (1951), pp. 13-14

STEVENSON, Robert. “Vicente Lusitano: New Light on his Career”. Journal of the American Musicological Society, 15/1 (1962), pp. 72-77

 

Este artigo faz-se acompanhar do vídeo da obra existente no YouTube (apenas disponível através do artigo):

Sobre o autor

Avatar photo

Musicólogo açoriano, doutorando na Universidade de Évora, é mestre em Ciências Musicais (FCSH NOVA) e licenciado em Música (UÉvora). É investigador em formação no CESEM e membro do MPMP. Catalogou o arquivo musical da Sé de Angra, foi bolseiro no projeto ORFEUS e também investigador no projeto PASEV. Fundou e dirigiu o Ensemble da Sé de Angra e também o Ensemble Eborensis, com concertos nas ilhas dos Açores, Continente português e França. Os seus interesses de investigação centram-se na polifonia portuguesa seiscentista, especialmente no Alentejo, e a música nos Açores do século XV ao final do XIX.