Paradoxos e impasses da Cultura refém das leis de renúncia fiscal

A noite do dia 2 de setembro de 2018 ficará marcada na história nacional como o fatídico dia no qual uma parte significativa do legado científico da Humanidade sob custódia dos Brasileiros foi perdida para sempre, consumida pelo profundo descaso onde jazem as Artes e as Ciências no Brasil. A despeito de ser a mais antiga instituição científica brasileira e de conter um dos maiores acervos de história natural e antropológica da América Latina, é fato inconteste que o Museu Nacional não figurava entre as prioridades culturais e científicas expressas nas políticas do Estado Brasileiro para o setor.

Foi preciso que todos testemunhassem – estupefactos – a quase total destruição do Museu Nacional para que as profundas contradições e discrepâncias produzidas pela estrutura da política cultural no Brasil finalmente se escancarassem no contraste inerente à tragédia. À luz de tamanha devastação, como aceitar o fato de que, a poucos metros de distância do Museu Nacional, o estádio do Maracanã consumiu bilhões dos cofres públicos em uma reforma faraônica para se adequar aos padrões da FIFA e ser privatizado logo em seguida? A mesma disparidade que também transparece no caso do recém-construído Museu do Amanhã: 215 milhões do erário público destinados à criação de um museu-espetáculo, sem acervo. E o que dizer sobre o dinheiro de renúncia fiscal que financia exposições de relevância artística francamente duvidosa, grandes shows e eventos com celebridades da indústria cultural, adaptação e montagem de musicais estadunidenses, enlatados globais para o cinema nacional e uma infinidade de entulho cultural pago a peso de ouro com recursos públicos?

Tanto a escandalosa destinação direta de vultosas somas do orçamento público para “equipamentos culturais e esportivos” estritamente alinhados com os interesses de ganhos privados na orgia dos mega-eventos quanto a distorcida política de cultura via isenção fiscal das leis de incentivo fazem parte de uma mesma racionalidade econômica que insere a cultura na base dos processos de acumulação típicos do modo de operação do capitalismo tardio. Contudo, se já existe uma consciência crítica bem difundida aos processos onde cidade, cultura, mega-eventos e especulação aparecem interligados, o mesmo não se pode afirmar no que tange ao entendimento médio sobre as leis de incentivo à cultura via isenção fiscal.

Para entender a resistência que alguns setores da classe artística e produtores culturais apresentam ao debate crítico às leis de incentivo, é preciso dizer, antes de tudo, que tais leis respondem pela quase totalidade do subsídio cultural realmente existente no Brasil de hoje. Diferente da saúde e da educação, a pasta da cultura não dispõe de um percentual mínimo do orçamento público constitucionalmente assegurado ao seu investimento, ficando os seus recursos constantemente expostos às diversas flutuações orçamentárias. Dessa forma, em virtude da absoluta falta de qualquer outro horizonte para as políticas culturais, é natural que os setores da classe artística que conseguem se beneficiar das leis de incentivo a tenham como uma espécie de porto seguro e a defendam contra os seus críticos.

Reposicionando o debate sobre a Lei Rouanet

Embora haja leis de incentivo em âmbito municipal e estadual, o epicentro da discussão recai, invariavelmente, sobre a lei federal 8.313, de 23 de dezembro de 1991, a Lei Rouanet. Contudo, para iniciar qualquer debate que se pretenda minimamente crítico sobre a lei em questão, faz-se necessário retornar ao terreno histórico que concretamente pariu a sua formulação. A Lei Rouanet (herdeira da antiga Lei Sarney de 1986) desponta em meio à implementação das políticas econômicas de intensificação liberal do governo Collor de Mello e não pode ser apartada da totalidade dos processos políticos e econômicos que estavam em curso no Brasil de então.

No intuito de desvelar a identidade da Lei Rouanet com tais processos políticos e econômicos de viés ultraliberal, é preciso ir ao cerne do seu modo de operação: trata-se de uma lei de renúncia fiscal, ou seja, o estado deixa de arrecadar uma parte do imposto das empresas que se proponham a aplicar este mesmo recurso no patrocínio de projetos artísticos e culturais previamente chancelados pelo governo. Neste dado arranjo, o governo delega ao setor privado a gestão do recurso público consagrado à cultura. A esta altura, um leitor mais atinado talvez se pergunte por que motivo o Estado não toma posse desta riqueza e a destina diretamente a um plano nacional de políticas para a Cultura.

Com o fito de justificar a privatização de empresas públicas absolutamente estratégicas aos interesses nacionais, ouvimos reiteradamente o cântico liberal de que a gestão privada seria capaz de conferir maior eficácia e produtividade a estas instituições quando comparada à gestão pública. Da mesma forma que, hoje, os mesmos porta-vozes do interesse econômico se esforçam por atribuir total responsabilidade pelo descaso com o Museu Nacional exclusivamente à gestão da UFRJ, atualizando a agenda de privatização das universidades públicas em meio aos escombros da memória nacional. Seguindo esta mesma lógica, a ideologia em torno da Lei Rouanet advoga que, entregando o arbítrio sobre o recurso público à sociedade civil (sic), fica garantida uma maior democratização, pluralismo, diversidade e liberdade de expressão nas produções culturais. Neste caso, subsumida a este argumento, reside a crença de que uma gestão estatal acarretaria, necessariamente, em um dirigismo cultural indesejável. Todos estes discursos expressam, em seus contextos particulares, diferentes matizes de uma mesma concepção (ultraliberal) na qual todas as virtudes supostamente residiriam na sabedoria inerente à espontaneidade do mercado e todos os vícios aos excessos de intervenção estatal, os quais corromperiam o seu equilíbrio natural.

Diante disso, é preciso salientar que a primeira grande contradição entre as posições que despontam em torno do debate da Lei Rouanet é o insólito combo que reúne a crítica ao “neoliberalismo” e às privatizações junto à defesa da lei. Tal consciência é politicamente, economicamente, historicamente e ideologicamente insustentável! A primeira ilusão que precisa rapidamente cair por terra afim de que esta discussão avance e se qualifique é a de que a Lei Rouanet seja uma cândida ilha de progressismo em meio a um mar de políticas “neoliberais”.

A Lei Rouanet e a Cultura como serviço: discutindo os impactos da demanda pelo marketing cultural

Talvez o efeito culturalmente mais perverso advindo ao funcionamento da lei seja precisamente aquele que desmente todas as suas premissas ideológicas. Assim, enquanto o discurso oficial reivindica a diversidade, a realidade nos confronta com o avanço dos processos de homogeneização e colonização inerentes à indústria cultural e ao “cosmopolitismo” metropolitano. Se o discurso oficial sustenta que a “sociedade civil” (representada, neste contexto, por ONG’s, OS’s e grandes empresas) seria capaz de garantir a pluralidade das produções subsidiadas, a realidade nos confronta com uma imensa concentração de recursos alocados, majoritariamente, em grandes projetos localizados entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Tal paradoxo entre discurso e realidade certamente formaria uma lista infindável de exemplos; contudo, podemos afirmar que o seu ápice se encontra consubstanciado em uma única constatação: enquanto o discurso oficial subentende que, deixando a gestão da cultura a cargo da “sociedade civil” estaríamos resguardados de um funesto dirigismo cultural de estado, a realidade nos confrontou com o fato de que através da Lei Rouanet foi possível conseguir patrocínio suficiente para trazer magníficas exposições de Monet, Rodin e Picasso ao Brasil, ao mesmo tempo em que não foi possível angariar um mínimo de recursos para manutenção e reformas emergenciais no Museu Nacional.

Como atrair e convencer “investidores culturais” a financiar obras de infraestrutura em um museu esquecido dentro de um parque municipal de freqüentação popular, localizado em um bairro carioca de classe média baixa? Qual o potencial de “retorno em media” de um projeto desta natureza? Segunda ilusão a cair por terra: não há “responsabilidade social” capaz de suprir tamanha disparidade em potencial de ganhos – empresas não “investem” em cultura – there is no free lunch!

Talvez o exemplo mais eloqüente envolvendo este tipo de paradoxo no terreno da música sinfônica carioca seja a gama de processos associados (direta ou indiretamente) ao tema da democratização/popularização da música clássica. Sob uma plataforma que advoga pela quebra dos rígidos e ultrapassados paradigmas da música sinfônica no sentido de produzir uma ruptura com o resíduo elitista e esnobe presente na tradição, surge, como único antídoto capaz de produzir tal superação, a incorporação dos repertórios e práticas pertencentes ao universo da cultura de massa. A hipótese que venho discutindo é a de que, a despeito do sincero desejo de renovação e revitalização de muitos músicos e produtores culturais que se colocam neste movimento, tais transformações muito pouco têm a ver com a democratização da experiência sinfônica ou mesmo com a necessidade urgente da quebra de paradigmas ultrapassados nesta tradição musical. O sentido destas transformações em curso e a ideologia a que elas se vinculam é uma intrincada rede onde se cruzam esta política de cultura centrada nas leis de renúncia fiscal, a necessidade crescente de as instituições sinfônicas se fazerem atrativas aos departamentos de marketing das grandes empresas diante do declínio do amparo estatal e o conjunto das teorias problematizadoras da música sinfônica e de tudo o que se vincula à sua tradição. Estas exercem um papel fundamental de legitimação intelectual ao liquidacionismo da experiência artístico-musical ao mesmo tempo que mantêm uma postura de ambigüidade apologética em relação à indústria cultural.

A Lei Rouanet, a classe artística e a questão nacional

Ao longo deste breve ensaio, procurei demonstrar que o deslocamento da espinha dorsal das políticas de cultura em direção às leis de isenção fiscal participou da aplicação de um agressivo programa de cunho liberalizante que buscava “diminuir o gigantismo estatal”, iniciado já no decurso da transição democrática; década de oitenta. Política cultural que se manteve como uma linha mestra ao longo de todos os governos que se sucederam desde então – completamente indiferente à coloração partidária –, alinhando o Brasil aos processos contemporâneos de inserção da Cultura na infraestrutura da acumulação capitalista. Assim, como último dos paradoxos, não se pode olvidar que, também no reino da austeridade permanente instaurado pela PEC 55 de Michel Temer, a Lei Rouanet segue prosperando, intocável.

Contrariando as preocupações daqueles que, ingenuamente, se apressam em defender a Lei Rouanet diante de qualquer ataque vazio e histriônico do conservadorismo de Direita, tudo indica que as leis de incentivo via renúncia fiscal seguirão triunfando ante a destruição contumaz das instituições públicas basilares ao desenvolvimento cultural do País: universidades, escolas de Arte, teatros e seus corpos artísticos, museus, bandas e orquestras seguirão reféns das leis de renúncia fiscal e demais políticas privatistas se quiserem continuar a existir. O conservadorismo grita, mas jamais conseguiria entregar o que promete, pois, na realidade, nunca romperia com a política econômica em que o sistema de subsídio via leis de renúncia fiscal está alicerçado. Definitivamente, a classe artística e as consciências progressistas precisam superar essa síndrome de Cândido – a Lei Rouanet está muito longe de ser “o melhor dos mundos possíveis”.

A tragédia do Museu Nacional e todo o debate que se levantou em torno das políticas de subsídio cultural nos confrontam com o fato de que não é possível escolher idealmente o mundo artístico e cultural que gostaríamos de ter herdado tentando importar as glórias e conquistas dos países centrais. Estamos no Brasil de 2018, temos de olhar para o nosso chão e enfrentar as lutas que se apresentam à nossa geração. Somente da nossa própria história, das dores e alegrias do nosso povo, das nossas limitações, das nossas tragédias e glórias poderá surgir o caminho. Tais constatações atualizam a necessidade de a classe artística constituir uma vanguarda que seja, a um tempo, intransigente na crítica aos processos de liquidacionismo das artes e mercantilização da Cultura e aguerrida na luta pela superação concreta de tais condições.

Enquanto orquestras sinfônicas, centros culturais, teatros, escolas de samba, companhias de dança e teatro, museus e quaisquer movimentos artísticos e culturais permanecerem cativos de uma política que se defina nos departamentos de marketing e segundo os interesses estratégicos de grandes bancos, empreiteiras e multinacionais, jamais teremos a oportunidade de discutir e estabelecer uma justa escala de prioridades para o subsídio cultural público. Uma que finalmente atenda ao desenvolvimento e à soberania do nosso povo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor

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Violinista formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO, actualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Música daquela instituição na linha da Etnografia das Práticas Musicais. Estuda as transformações em curso no campo da música sinfónica do Rio de Janeiro, investigando a relação entre estas transformações e as políticas de Estado para o sector. Exerce também intensa actividade pedagógica como professora de violino pelo Método Suzuki e constrói um trabalho colectivo no ramo de música para eventos com o Grupo Afinatto.