Augusto Roquemont (Genebra, 1804 – Porto, 1852) foi um dos artistas responsáveis pela introdução da “pintura de género” em Portugal, destacando-se pela representação de costumes rurais da zona de Guimarães, onde residiu durante algum tempo. Guimarães foi sempre um porto de abrigo para Roquemont e um filão de inspiração para o seu exercício artístico na década de 30 – vejam-se a título de exemplo as obras Cena de Aldeia (Chafariz de Guimarães), A Colegiada de Guimarães e Varanda de Frei Jerónimo. Uma dessas obras é Procissão (1832-1839), actualmente integrante da colecção do Museu Nacional Soares dos Reis.
Através de uma narrativa plástica, Roquemont fixa uma tradição popular, expressão de fé e observância de práticas religiosas coevas.
Verifica-se que a procissão parte de uma ermida e desce pela encosta coleante, tendo uma ampla participação da população, disposta em narrativas paralelas, gestos e coloridos diversos, para os quais muito contribui a paleta cromática dos trajes tradicionais e o tratamento lumínico. Alguns participantes destacam-se devido a um especial envolvimento na procissão, tais como os músicos em actividade performativa, o sacerdote e os portadores de andores, de cruzes processionais e de estandartes.
Procissão, óleo sobre tela, 360 x 470 cm. A. Roquemont (1832-1839). MNSR Pin 994. Fotografia: Carlos Monteiro, 1996. DGPC/ADF. Esta obra abrange um programa iconográfico extenso, cujos elementos se podem organizar em subgrupos de iconografia religiosa e de iconografia musical.
O primeiro núcleo iconográfico musical está no plano inferior da composição, sendo constituído por três membranofones: um bombo seguro verticalmente e dois tambores percutidos (ou um tambor e uma caixa) suspensos horizontalmente. Este conjunto instrumental é conhecido como “Zés-Pereiras”. Em segundo plano surge o quarto membranofone: o instrumento danificado, junto ao qual um homem bebe um copo de vinho, está pousado no chão, possivelmente usado como mesa ou apoio.
Grupo de “Zés-Pereiras”. Pormenor de Procissão, de A. Roquemont.
O segundo grupo iconográfico musical encontra-se no plano superior da composição, junto ao sacerdote, imediatamente atrás do andor de Nossa Senhora da Oliveira (padroeira de Guimarães e ainda hoje presente na pedra de armas da cidade), sendo constituído por dois aerofones (clarinete, oboé?) e a flauta travessa, também denominada “grileira”, e dois cordofones friccionados (provavelmente rabecas, “violinos populares”).
Aerofones.
Cordofones.
Sino
Por fim, o terceiro núcleo iconográfico musical é constituído pelo sino da torre da igreja, que integra a família dos idiofones de vasilha percutida com um badalo. O sino pode ser também enquadrado no subgrupo de iconografia religiosa, devido ao lugar onde está suspenso e à sua simbologia, que transcende meramente as suas funções enquanto instrumento musical, crendo-se que possui propriedades apotropaicas e esconjuratórias, não só pelo som emitido, como também pelas inscrições nele contidas.
Através da atenção ao pormenor, de uma execução cuidada e de um contraponto entre o sacro e o profano, Procissão permite-nos reconstituir algumas tradições religiosas e etnográficas associadas a práticas performativas musicais oitocentistas e perceber quais os instrumentos musicais mais frequentes nestas situações no contexto vimaranense do século XIX.
N.B.: Para um conhecimento mais aprofundado da obra Procissão de A. Roquemont, aconselha-se a leitura do capítulo “Quem toca carrilhão não vai na procissão: representações de iconografia musical numa das pinturas de género de Augusto Roquemont” (Ana Ester Tavares, 2020) do e-book “Iconografia Musical: Temas Portugueses”, quarto volume da colecção CESEM/NOVA FCSH, disponível aqui.
Ana Ester Tavares assina o “Música entre Artes #8” a convite de Luzia Rocha.