(continuação)
Na sequência do texto do passado mês de Setembro, onde se analisaram painéis de azulejo do artista argentino Alberto Cédron (1937-2007), concluímos a série com um último exemplo, referente ao reinado de D. Maria I, que recebeu os cognomes de “a Piedosa” e “a Louca”.
O retrato de D. Maria I (1734-1816) aqui apresentado é uma cópia da pintura de José de Leandro de Carvalho, com data de 1808. Relativamente ao seu reinado, são destacados os seguintes factos históricos: a construção da Basílica da Estrela, as fundações da Real Academia de Ciências e da Real Biblioteca Pública, em Lisboa, a acção do intendente Diogo Inácio de Pina Manique, o Palácio de Queluz (serviu como um discreto lugar de encarceramento para a rainha D. Maria I quando a sua loucura continuou a piorar) e a iluminação pública.
Interessa-nos, do ponto de vista da iconografia musical, a questão da iluminação pública e do que esta traz “à luz” do observador. No último quartel do século XVIII, a noite de Lisboa era ainda território de marginalidade e insegurança, vigiada pelo serviço civil dos Quadrilheiros, homens comuns, escolhidos pela sua seriedade, para dar conta de ocorrências nas diferentes zonas da cidade. O medo do desconhecido impedia os lisboetas de saírem, não só receosos da criminalidade, mas também dos condenados pela Igreja de actos subversivos nocturnos, como as mulheres acusadas de bruxaria ou os judeus. Sair à noite significava colocar-se em perigo e, ao mesmo tempo, sob suspeita. Em 1780, por insistência de Pina Manique, Lisboa é iluminada por lamparinas de azeite de parca profusão, pagas não pelo Estado mas através de um imposto cobrado aos cidadãos. O preço demasiado alto do azeite e a revolta da população levam a que doze anos mais tarde Lisboa regresse à escuridão. Só em 1801, depois da subida do número de assaltos e assassinatos, D. Maria I decreta que seja resolvida a questão da iluminação pública e criada a Guarda Real da Polícia.
O que vemos no painel de azulejos é o acender de uma dessas lamparinas que ilumina não só a rua, como também o que se passa no interior de um edifício. No primeiro andar (da direita para a esquerda do observador) vemos: um homem (vestido de mulher) cujo ténue reflexo se observa no espelho, um escritor solitário e três viúvas alcoviteiras; no segundo andar: uma mãe dando jantar aos seus cinco filhos, o marido a agredir a esposa, nua, após esta ter sido apanhada no quarto com o amante (que foge pela janela) e, por fim, uma reprodução do quadro “o Fado” de José Malhoa. Neste quadro, Malhoa retratou Amâncio, um fadista desordeiro, a tocar guitarra portuguesa, e a sua amante Adelaide, conhecida como “Adelaide da facada” (certamente pela cicatriz que tinha na face esquerda), em atitude de escuta, num cenário intimista que remete para um pobre quarto com mesa, uma garrafa de vinho e um copo.
Não deixa de ser um paradoxo como Cedrón escolhe representar uma obra muito posterior à época em questão: a tela de Malhoa tem duas versões, uma pintada em 1909 e outra em 1910. Assume-se que, numa alusão ao fado, Cedrón tenha optado por uma citação icónica de algo familiar ao olho de todos os portugueses. Um apontamento que destacamos é o encontro, frente a frente, do cão e do gato preto, por certo simbolizando as rixas típicas de uma cidade que, iluminada, se entrega cada vez mais aos prazeres e à vida boémia.