O dia 26 de Janeiro de 2024 ficou marcado pela estreia no Porto, ao que nos foi possível aferir, da História Trágico-Marítima de Fernando Lopes-Graça, sobre textos de Miguel Torga. O público acorreu em bom número à Sala Suggia da Casa da Música, num evento bastante representativo da escolha de Portugal como “país-tema” da instituição portuense ao longo deste ano, o que só podemos louvar de forma inequívoca. A interpretação deste concerto, que incluiu também La Mer de Debussy, ficou a cargo de Nuno Coelho (artista associado a esta temporada), à frente da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música, do barítono André Baleiro e de um Coro Participativo, criado especificamente para a obra de Graça.
A composição da História Trágico-Marítima teve o seu primeiro capítulo em 1942, numa versão para tenor e orquestra que, embora não chegando a estrear, valeu ao compositor o Prémio de Composição do Círculo de Cultura Musical. Volvidas cerca de duas décadas, em 1959, Lopes-Graça revê esta cantata e conclui a versão que é agora apresentada, para barítono, coro de contraltos (representando o canto das sereias, apenas vocalizado) e orquestra. Numa época de plena propaganda dos valores do Estado Novo – lembremos que a Exposição do Mundo Português decorreu em 1940 –, a visão de Lopes-Graça procurou destituir os Descobrimentos dos elementos épicos e de exaltação que lhes eram mais directamente associados, optando, nos sete poemas de Torga, por musicar sobretudo um ambiente geral dolente e meditativo.
A interpretação de André Baleiro foi logo ao encontro, após a intervenção inicial do coro, num movimento ondulatório que faz o mar tornar-se presença constante, desta atmosfera nebulosa e algo sofrida. A excelência da sua emissão e dicção do texto cantado e falado em português foi por vezes prejudicada pela tessitura bastante grave que Lopes-Graça destinou ao papel. A massa orquestral tornou-se excessiva em alguns momentos – e isso foi muito notório sobretudo nesta sala, onde é bastante difícil um equilíbrio confortável do solista “no confronto” com a orquestra, não obstante os esforços de Nuno Coelho para reduzir ao máximo esta discrepância, muito causada em parte, parece-nos, por uma orquestração excessiva – para que a voz solista se destaque sem um esforço inadequado para alguns momentos mais suaves da partitura. Ainda assim, notamos como particularmente impactante a leitura que os dois portugueses (barítono e maestro) fizeram do quarto andamento, “O Regresso”: num poema particularmente longo face aos restantes, a alternância de vários planos narrativos foi conseguida com uma expressividade rara, plenamente consistente com o carácter do texto.
Lopes-Graça explora de forma inventiva as sonoridades marítimas na orquestra moderna, sobretudo os movimentos largos e imponentes do oceano, bem como os momentos suspensivos da acção, tão característicos da sua música. Embora este factor esteja presente ao longo de toda a partitura, destacamos o sexto andamento, “Tormenta”, onde é descrita “uma tempestade real e simbólica”, segundo a leitura de Sérgio Neto, num excelente texto que acompanhou o programa de sala. Este penúltimo poema é orquestrado com grande amplitude tímbrica e uma construção musical impactante, excelentemente interpretada pela orquestra e por André Baleiro, cujas passagens cantadas ou emitidas em parlato não deixaram o público indiferente. A propósito da fruição do público, um pedido à equipa técnica da Casa da Música: seria útil poder ter a projecção do texto cantado, para que não fosse necessária a existência de uma folha impressa (extra-programa) que, multiplicada às centenas, distraía todo o auditório com o seu inevitável ruído.
A segunda parte deste concerto incluiu uma das mais incontornáveis obras de Claude Debussy sobre o mar. La Mer é, inquestionavelmente, uma obra-prima da orquestração, de que a Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música e Nuno Coelho apresentaram uma versão enérgica e luminosa – a que foi útil o contraste com o ambiente mais sombrio da primeira parte –, mas sem perder todas as subtilezas e nuances tão próprias da música do mestre francês. Cabe-nos destacar a participação límpida do flautista Paulo Barros, muito consistente ao longo de toda a execução, bem como de ambas as harpistas da orquestra, Ilaria Vivan e Erica Versace. Esperamos poder continuar a ouvir grandes obras orquestrais portuguesas no Porto, como felizmente vem acontecendo com cada vez maior regularidade, visto haver todas as condições artísticas e técnicas para que o trabalho apresentado seja merecedor da maior atenção do público portuense e nacional.