Dentre os compositores brasileiros que produziram para a sala de concertos ao longo do século XX, César Guerra-Peixe figura na historiografia musical como um dos mais diretamente vinculados ao nacionalismo e à ideia de uma música baseada no folclore, uma espécie de nacionalista militante que teria largado o dodecafonismo por amor à pátria. É importante lembrar, porém, que questões relativas à técnica composicional também desempenharam um papel significativo na imagem que ele tentou construir para si ao longo de sua trajetória.

Se olharmos para os anos 1950, quando Guerra-Peixe deixava de compor música dodecafônica em favor daquilo que chamava de “música brasileira”, veremos que durante aquele período ele não só se lançou às pesquisas folclóricas que o celebrizaram, no Recife e pelo interior de São Paulo, mas também refletiu e discutiu muito a forma de compor adotada por ele próprio e por seus pares. Guerra-Peixe parecia empenhado em encontrar o “arsenal” mais adequado à criação de uma música de concerto que se pudesse dizer brasileira e moderna, recorrendo a todo um aparato que, de certo modo, garantiria sustentação à sua prática composicional, incluindo técnicas supostamente baseadas em leis naturais, a escolha cuidadosa de práticas e tradições de origens específicas e uma espécie de argumentação vigilante em torno desses elementos.

Aos olhos de Guerra-Peixe, o cenário da música de concerto brasileira da época estava dominado por um bloco mais ou menos homogêneo de compositores já estabelecidos, com Villa-Lobos à frente, e cuja música estaria em vias de academização e “rotinização”. Para ele, dois problemas principais marcavam a produção desses músicos: carência de apuro técnico e desconhecimento do folclore brasileiro, o que impediria que tivessem qualquer relevância, já que, sem técnica, não seriam capazes de escrever música que fizesse frente às grandes figuras da época; sem conhecer o folclore, não tinham como representar a nação com sua música.

Além disso, para Guerra-Peixe, compor música nacional ou compor à maneira europeia não era simples questão de mudar os materiais de base. Como ele próprio escreveu quando de suas primeiras tentativas de criar música nacionalista após abandonar o dodecafonismo, “falta[va-lhe] métier neste sentido”, e de fato tudo indica que ele se voltou para o folclore em busca também de sugestões de procedimentos técnicos, indo além da coleta de melodias e sugestões rítmicas para alçá-lo à condição de elemento formador do compositor:

 

De tempos em tempos minhas preferências […] mudam com as minhas ideias. Para mim, tanto Haydn me pareceu compositor oferecendo mensagem bastante nova, como Schoenberg me soou gasto, arcaico. Já achei a Sagração da Primavera, de Stravinsky, uma obra passadista e hoje a sinto revolucionária no sentido mais amplo. De qualquer modo, porém, o meu guia mais seguro nos últimos tempos tem sido o folclore, especialmente o de fonte ibero-africana, no qual observo um mundo inédito de experiências e adoto as que suponho me servirem melhor na qualidade de compositor. Aliás, vale acrescentar que, a meu ver, aprendi tanto com os tamborileiros dos cultos africanos do Recife, quanto nos conservatórios e nos livros de musicologia. Pelo menos assim o entendo.

 

[…]

ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 11 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).

Sobre o autor

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Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (2003) e mestrado em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006). Tem experiência nas áreas de Sociologia da Cultura e da Música, História, Musicologia e Etnomusicologia, actuando principalmente com os seguintes temas: música, pensamento social brasileiro e movimentos artísticos nos séculos XX e XXI.