A 3 de Março de 1596 era conferido o grau de Bacharel em Artes na Universidade de Évora a Estêvão Lopes Morago, oriundo do “Vallecas, no reino de Toledo”. Morago permaneceu ainda alguns anos em Évora, mudando-se em data indeterminada para Viseu, onde já se encontrava em 1599. Aqui, não só progrediu na carreira musical, mas também na eclesiástica, ascendendo a cónego da Catedral em 1608. Por volta de 1628, retirou-se para o convento franciscano existente em Orgens, onde se julga terá terminado os seus dias. O percurso biográfico deste compositor é ainda hoje bastante desconhecido e, diga-se, algo enigmático, assim como a capacidade com que escreveu algumas dezenas de obras, hoje preservadas em dois livros de coro pertencentes à Catedral de Viseu. Ainda hoje musicólogos e intérpretes questionam como este mestre-de-capela, de certa forma isolado em Viseu, conseguiu produzir um grupo de obras que figuram entre a melhor música produzida em Portugal nas primeiras décadas do século XVII. E o programa apresentado no passado dia 6 de Outubro comprovou-o.
O segundo concerto da vigésima primeira edição das Jornadas Internacionais Escola de Música da Sé de Évora trouxe à Catedral de Évora o grupo vocal Gradualia, que apresentou um programa monográfico com obras de Estêvão Lopes Morago. O grupo Gradualia, liderado por Simón Andueza, tem-se afirmado nos últimos anos no panorama coral polifónico espanhol com actuações centradas em programas de alto nível, sobretudo focando obras do final do século XVI e início do XVII, nomeadamente Tomás Luis de Victoria, Francisco Guerrero e Alonso Lobo. De notar que este grupo realizou em 2016 um programa monográfico assinalando os 450 anos do nascimento de Fr. Manuel Cardoso.
O programa musical que Gradualia apresentou em Évora concentrou-se num grupo de obras destinadas ao ofício e missa de defuntos composto por Estêvão Lopes Morago e que, em grande parte, se encontra ainda inédito modernamente. As obras foram divididas em dois grandes grupos conforme a situação litúrgica. Assim, para ofício, o invitatório Regem cui omnia vivunt, as lições Parce mihi, Domine e Quare de vulva eduxisti me e os responsórios Credo quod redemptor e Peccatem me quotidie. O grupo de obras para a missa inclui as rubricas que compõem o próprio e o ordinário da Missa Pro Defunctis (Introitus, Kyrie, Graduale, Offertorium, Sanctus, Agnus Dei e Communio), às quais se juntam o motete Versa est in luctum e os responsórios Memento mei, Deus e Libera me.
No que diz respeito às obras para o ofício, é importante salientar o esforço do grupo em dar ritmo ao texto, naquelas que são (como é o caso das lições) obras predominantemente homofónicas. Em algumas ocasiões a acentuação de determinadas sílabas ou palavras acabou por desequilibrar o texto musical, nomeadamente alguns momentos cadenciais onde praticamente não se conseguiu ouvir a sonoridade final. O grupo revelou-se bastante coeso na missa, criando um contraste entre as rubricas onde a ligação entre as frases estabeleceu uma linha contínua dos melismas do cantochão, como é o caso do Introitus. Pelo contrário, em rubricas com mais texto e mais silábicas voltou a notar-se expressividade em ritmar o texto, mas mais equilibrado do que as rubricas do ofício. Em termos de contraste dinâmico, há que assinalar a transposição de uma sonoridade quase mística que encontramos em interpretações de obras polifónicas espanholas como o ofício de defuntos de Tomás Luis de Victoria ou Cristóbal de Morales para a obra de Morago. O âmbito dinâmico expandiu-se desde um etéreo “dona eis Domine et lux perpetua luceat eis” do Introitus ao turbilhão expressivo de “libera eas de ore leonis ne absorbeat eas tartarus”. Em certa forma, estes momentos comprovam que a música polifónica é bastante expressiva, permitindo-se a interpretações mais arrojadas em termos de dinâmica, lembrando, por exemplo, algumas interpretações que o Grupo Vocal Olisipo trouxe a Évora em edições anteriores das Jornadas.
Um pormenor a saudar foi a inclusão de cantochão nas obras polifónicas. Na maioria dos casos, houve essa necessidade uma vez que estas estavam escritas em alternância de versos com o cantochão, como é o caso dos responsórios Peccatem me quotidie ou Libera me. Muito frequentemente é apenas apresentado o texto posto em polifonia, esquecendo-se que certas obras possuem secções em cantochão, geralmente ignoradas quando ali não surgem intercaladas. No caso do Offertorium, foi cantado o verso Hostias et preces, regressando ao repetendum Quam olim. É de saudar o esforço de colocar no programa obras com secções em cantochão (que em outros casos se limitam às entoações no ordinário da missa ou um ou outro Magnificat), o que transmitiu um interessante efeito entre monodia e polifonia, remetendo para a coexistência destes dois tipos de repertório à época em que Morago escreveu as obras.
O concerto fechou com um grupo de três obras de temática mariana que não constavam do programa – Surge propera, Tota pulchra es e Salve Regina – do compositor espanhol, contemporâneo de Morago, Miguel Navarro. São, de facto, três obras extraordinárias que revelam grande ciência do contraponto por parte deste mestre. É mais um exemplo do número impressionante de compositores que ainda hoje vivem na sombra de Morales, Guerrero ou Victoria, mas cuja música não fica atrás destes mestres mais conhecidos do público.
Este foi um concerto muito revelador, não só da qualidade musical do grupo Gradualia, mas também de um grupo de obras de Estêvão Lopes Morago na sua maioria ainda desconhecidas do público em geral e que, esperemos, possam vir a ser ouvidas em concertos futuros.
EXEMPLO DO CONCERTO
Soprano | Delia Agúndez
Alto | Ana Cristina Marco
Tenor | Diego Blázquez
Baixo | Simón Andueza (dir.)