A escritora Eugénia Pedrosa lançou, em Junho de 2022, um livro chamado “Andamentos: a minha segunda metade do século XX“, na minha querida Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Escrita sóbria e enxuta, faz neste livro um apanhado dos momentos mais marcantes da sua vida: o 25 de Abril de 1974 e a sua longa experiência no Coral de Letras da Universidade do Porto (CLUP). Ao falarmos do CLUP, falamos do maestro José Luís Borges Coelho. E quando deste falamos, logo aparece Fernando Lopes-Graça em pano de fundo. Ninguém como este maestro sachou tanto e tão bem a alma do compositor. Ninguém. 

O CLUP tocou muitas vidas. A minha também. É quase a mesma coisa que dizer que Lopes-Graça, no regaço coral de Borges Coelho, tocou muitas vidas. E a minha também. 

Em boa hora a Eugénia me pediu que partilhasse, no contexto de “Andamentos: a minha segunda metade do século XX“, uma memória escrita da minha própria vivência do CLUP, do ensinamento de Lopes-Graça através do olho clínico do José Luís, o meu primeiro professor de composição e o mais decisivo. Partilho aqui algumas passagens dessa memória:

Obras fundadoras

Há obras fundadoras, sim. Umas mais remotas, da memória afectiva via paterna (ainda hoje me comovo com as mesmas passagens que comoviam o meu pai), tão importantes que são por estarem entranhadas desde a infância. Outras, da minha própria descoberta e do caminho que tenho feito desde as minhas universidades e desde que Borges Coelho, figura vital no processo de demanda da beleza, me botou ao latim. Sendo eu uma esponja, ficou-me grande ensinamento da sonoridade coral de Lopes-Graça que exerceu forte encantamento logo naqueles primeiros dias de experiência no Coral. O Graça de que falo, é o compositor que harmonizou com arroubo mimoso as jóias da melodia popular portuguesa: o autor de O milho da nossa terra, no suave pêndulo ternário hemiolado e no cálido registo médio vocal; o autor de Confusa, perdida, uma evocação melíflua do estilo imitativo de antanho, cheia da patine do tempo; o autor dos tremendos Esconjuros, que nos dão água de trovão e leite de maldição; e das maravilhosas Onze encomendações das almas (que obra-prima!) onde nos deixou intocados o sentir popular cavo dos passos da Paixão e a pulsão da hora incerta da morte: Se dormis cristãos! (Beira Baixa), o meu amado Ó meu Divino Senhor (Beira Alta) que tanta influência exerce na minha própria abordagem enxuta da coralidade; ou o premonitório Irmãos meus, cuidai na morte, mel transmontano para os meus ouvidos. Enfim, o Graça do Natal português que seria tão menos caloroso não tivesse ele achado o impalpável Bendito e louvado seja, que rememoro ainda no regaço da voz da Eugénia Pedrosa, entre tantas outras jóias. Teve forte impacto sobre mim num momento vital, no rigoroso vértice da inflexão que o rumo da minha vida assumiu. Sim, Graça demeure.

Apotegma

A primeira vez que vi o Opus Ensemble tocar, foi em 1983, no Porto, perto do Teatro Carlos Alberto, num espaço descontraído na Rua das Oliveiras, um local de encontro e de tertúlia universitária que já não existe. Passaram 40 anos. Tocaram música de Lopes-Graça (Sete Apotegmas). Do resto do concerto não me lembro, confesso. Não foi suficientemente relevante. Mas do Graça lembro-me bem. E lembro-me bem porque tinha acabado de ingressar no Coral de Letras da Universidade do Porto onde fazíamos muita música sua. Ainda hoje faço a ponte, na minha memória afectiva, das impressões colhidas entre a linguagem coral do Graça, redonda e envolvente em que, então, me iniciava, e a linguagem austera daqueles “Apotegmas” que o Opus Ensemble tocou naquela acústica anecóica.

Momentos fundadores, estes, de descoberta, nos quais vamos formando o próprio gosto. Uma coisa é certa: talvez influenciado, em parte pelo menos, por esta diálise de dois Graças distintos (um caloroso e outro álgido), posso afirmar, neste breve momento psicanalítico, que as minhas obras corais estão entre as minhas obras dilectas.

Óculos embaciados

Concerto inspirado do Coral, aquele na Igreja do Foco no Porto, ali à Boavista. Especial porque estava o Lopes-Graça a assistir na primeira fila. Fazíamos muito reportório seu naquela noite, como era hábito. A certa altura, o Coral cantou o Ave verum de Mozart. O Graça ficou em êxtase logo na primeira frase. Eu estava a observá-lo fixamente (alimento-me disto, que se há-de fazer?). As emoções são contagiosas. A certa altura elevou a cabeça em posição extática e quando voltou à posição normal vinha com os óculos completamente embaciados. Tinha passado para outra dimensão de natureza dificilmente explicável porque incorpórea. Baixou a cabeça e assim permaneceu até ao fim daquele licor musical.

Aprendi a amar Mozart pelos óculos embaciados do Graça.


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