Nos dias 14 e 15 de dezembro, esteve em cartaz no Theatro São Pedro, em São Paulo, em estreia mundial, a ópera O Peru de Natal, com música de Leonardo Martinelli e libreto de Jorge Coli, baseada em um conto de Mário de Andrade, com direção cênica de Mauro Wrona e musical de Miguel Campos Neto.
Assim como em O Espelho (2017), de Jorge Antunes, sobre um conto de Machado de Assis e com adaptação do mesmo libretista, somos surpreendidos com uma ópera elaborada a partir de um texto que não se associaria imediatamente a este gênero musical e, mais uma vez, a surpresa é das mais agradáveis e interessantes.
Coli traz à cena com mestria a atmosfera do conto e a questão moral entre o luto e a festa, o prazer e a culpa, que é o cerne da narrativa. Trocando de “Juca” para “Raul” (segundo nome do escritor) o nome do protagonista, e não incluindo na ópera as personagens do irmão e da irmã, o libretista realça o caráter autobiográfico do conto, aproximando o núcleo familiar do de Mário, que viveu quase toda a vida com sua mãe, Maria Luísa, e sua tia Nhãnhã (Tidinha, na ópera).
A música de Martinelli, predominantemente atonal, traz ao ouvinte uma grande sensação de estranhamento, combinando com a tensão do conflito principal e contrastando com as passagens mais cômicas. Também há que se destacar o uso estratégico do funk e da música de escola de samba, licenças poéticas muito pertinentes dramaticamente, mesmo estando explicitamente situado no libreto o ano de 1917. A divertidíssima luta em ringue entre o cinzento pai e o alegre peru aborda o conflito principal com precisão e leveza, e as cenas finais, com a embriaguez da tia (passagem por sinal vocalmente dificílima e muito bem executada pela soprano Daiane Scales) e o final literalmente carnavalesco, fazem a ceia de Natal dessa família um pouco de todos nós, com o olhar crítico e ao mesmo tempo complacente que cabe a essas ocasiões.
Para além da já louvável e urgente iniciativa de uma ópera contemporânea em língua portuguesa, merece aplausos o excelente desempenho e dedicação dos jovens da orquestra e da Academia de ópera do Theatro São Pedro. Entre os cantores solistas, a única convidada foi a soprano Tati Helene, que precisou cobrir emergencialmente o papel da mãe, tendo-o aprendido, segundo nos relatou, em apenas dez dias. E foi brilhante!
Fazemos apenas uma ressalva com relação à escrita orquestral nas partes do protagonista: foi muito inteligente e inovadora a escolha de um baixo para o papel, e muito apropriado o uso de uma voz jovem, no caso desse timbre; por vezes, contudo, a escrita tornava-se densa demais e cobria a voz de Pedro Côrtes, que, como se pôde ver, dava o máximo de si.
Ficam os votos de um Feliz Natal atrasado aos leitores e de uma digressão portuguesa para O Peru de Natal, cujo principal defeito foi uma estreia brasileira tão curta.