Memórias
Nos 20 anos da morte de Fernando Lopes-Graça

 

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Nesse dia da primeira aula (quando já decidira tornar-me compositor de vez, largando para sempre o amadorismo em matéria de criação como a vinha praticando até aí, e os pincéis com que pensara ainda entrar para a escola de artes António Arroio) esperámos todos – não seríamos muitos, sete ou oito no máximo, entre os quais algumas raparigas – que o Graça aparecesse, ferozmente orientados pela D. Laurinda – um ícone da velha Academia, já falecida – e amontoados no corredor perto da porta da sala, que era pequena e uma das primeiras do longo corredor da escola. Quando o Graça finalmente apareceu, pontual como sempre, a primeira coisa que fez foi pedir à D. Laurinda que lhe fosse buscar um copo de água, pedido que, pela reacção altaneira do sobrolho da senhora, devia ser habitual mas não muito apreciado, uma vez que a D. Laurinda era muito senhora do seu nariz – embora fosse, tal como o Graça, uma excelente pessoa.

Fervendo de excitação, entrámos. Ao fim e ao cabo, éramos apenas um magote de putos, vários dos quais – eu incluído – com pretensões a compositor (alguns apenas faziam a disciplina por conveniência do currículo, mas ainda éramos uma mão-cheia os que sonhávamos com a criação artística), sentados a uma velha mesa com o maior compositor português vivo; podíamos estar nervosos!

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O chá das cinco era certo, e era o próprio Graça quem o preparava com vaidade e requintes de connaisseur, nunca se esquecendo de mencionar a origem das delicadas folhas, que lhe tinham sido oferecidas por amigos e trazidas directamente de Ceilão. A degustação era acompanhada pela explicação de todo o ritual: o bule e as chávenas escaldadas, um pouco de açúcar no bule por cima para as folhas ficarem no fundo, o tempo de permanência do chá na infusão, etc.. No entanto, era raro os bolos permanecerem no frigorífico até à hora do chá e, regra geral, o Graça não comia um nem dois: à hora do jantar já todos, ou quase todos, tinham desaparecido.

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Directa, é verdade, e nunca hipócrita, a sua personalidade firme fê-lo arranjar muitos inimigos, músicos medíocres rancorosos por alguma crítica mais mordaz, pública ou directa. Porém, todos os grandes músicos que contactaram com ele, e que ele também criticou quando não gostava deste ou daquele resultado, mantiveram a sua amizade inabalável, pois só um grande artista percebe que a crítica é necessária quando não é maldosa, e a crítica do Graça era directa e por vezes corrosiva, mas nunca feita por maldade ou rancor. Artistas como Olga Prats, que o conheceram intimamente, aceitaram sempre as suas opiniões e discutiram com ele pontos de vista artísticos divergentes, que o Graça por vezes aceitava, por vezes não. Só os medíocres se melindravam, como é típico.

Aliás uma, senão a maior prova da honestidade de Lopes-Graça era a sua autocrítica, igualmente feroz e sem perdão. Foram muitas as vezes que o ouvi dizer, de peças suas, que isto ou aquilo não prestava, que eram coisas sem importância, que ainda não tinha atingido este ou aquele nível do ofício, nesta ou naquela passagem, críticas às quais se aliavam as suas violentas reacções quando eu admirava “demais” uma sua obra. O máximo que o Graça condescendia em relação à sua própria música era dizer “não está mal, não está mal”, e até este pequeno encómio nem sempre acontecia. Então se o louvor era acompanhado de comparações com os seus ídolos, como eu por vezes me atrevia a fazer, comentando que, por exemplo, a Sinfonia per Orchestra podia bem alinhar com uma obra como o Concerto para Orquestra de Béla Bartók (opinião que ainda hoje mantenho firmemente, tendo já tido oportunidade de a afirmar em público), então é que era ver o Graça piurso! “Não digas disparates, rapaz!” era a exclamação mais simpática (o Graça, mesmo agastado, nunca descia à grosseria; era demasiado educado para isso), acompanhada por um gesto do braço para  o lado, como que a enxotar a desastrada opinião.

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Lopes-Graça, tal como Schoenberg ou Zemlinsky, nunca se negou a ensinar quem o abordasse nesse sentido, e nunca me cobrou um centavo pelas tardes que o fazia perder com a minha música e as minhas questões, antes aceitando-as como uma dádiva de juventude, num espírito de desinteresse total pelas recompensas materais. Era claro que gostava de estar com gente nova. Com o mesmo entusiasmo com que dedicou uma aula inteira na AAM às minhas primeiras balbuciações musicais independentes, dedicou muitas horas e entusiasmo aos meus progressos, chegando até, passados alguns anos apenas, a considerar – suprema humildade – não ser já capaz de me ensinar nada, pois a música que lhe levava tinha já ultrapassado as suas capacidades de avaliação estética e técnica. Disse-me isto pela primeira vez quando lhe mostrei a minha primeira obra para orquestra (Coral I, 1990), composta durante as minhas aulas com Constança Capdeville na ESML, e que fora executada ao vivo pela Nova Filarmonia Portuguesa sob a direcção de Álvaro Cassuto. Ouviu, gostou e, coisa rara, elogiou directamente a peça, dizendo que aquela devia ser a melhor coisa que eu fizera até aí, expressão que, vinda da sua boca, era já muito.

Porém, quando lhe pedi para comentar tecnicamente alguns detalhes com a partitura à frente, fê-lo a contragosto, consciente de que aquela música era demasiado “moderna” para si (não esqueçamos que o Graça nasceu em 1906 e toda a sua estética, mesmo quando esta, nos anos sessenta, evoluiu mais radicalmente, continua uma linguagem pós-Bartókiana, pertencente à mesma geração de um Chostakovitch (n. 1906) e até de um Britten (n. 1913). A segunda obra que lhe mostrei, também para orquestra mas ainda mais complexa e radical, já se negou – simpática mas firmemente – a analisar ou comentar. Olhou para a partitura, folheou-a, mas disse-me outra vez que aquilo “já não era para ele.”

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ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 11 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).

Sobre o autor

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Sérgio Azevedo nasceu em Coimbra em 1968. Estudou Composição na Academia de Amadores de Música com Fernando Lopes-Graça e concluiu os estudos superiores com 20 valores na Escola Superior de Música de Lisboa, onde trabalhou com Constança Capdeville e Christopher Bochmann. Em 2012 concluiu o Doutoramento na Universidade do Minho. Ganhou diversos prémios e as suas obras têm sido encomendadas e tocadas em vários países pelos mais prestigiados intérpretes. Publicou em 1999 'A Invenção dos Sons' (Caminho), em 2007 'Olga Prats, Um Piano Singular' (Bizâncio), e colabora com 'The New Grove Dictionary of Music and Musicians'. É professor na ESML e colaborador da Antena 2 desde 1993. É o responsável artístico da edição completa das obras de Fernando Lopes-Graça, iniciativa do Museu da Música Portuguesa (Cascais). Foi membro convidado do CESEM desde a sua fundação até 2007. Em 2011 ganhou o Prémio Autores, da Sociedade Portuguesa de Autores, na categoria de 'Melhor trabalho de música erudita 2010' com o seu 'Concerto para Piano e Orquestra'.