Os baixos (ainda mais) sumptuosos
Éloge des bonnes cordes
Publicamos, não sem algum atraso, a referência inelutável ao concerto que o Ensemble Bonne Corde levou à 27.ª temporada Música em São Roque, a 18 de Outubro último, no espaço magnífico do Convento de São Pedro de Alcântara – atraso a que nos não foi possível obstar, mas que a importância do objecto em apreço, não obstante, sempre justificaria.
Segundo concerto na programação de 2015 desta temporada anual de iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a primeira apresentação deste novo programa, subordinado ao título O Classicismo na Patriarcal: Música Sacra Portuguesa nos finais do século XVIII, de concepção radicalmente nova, e uma vez mais resultado, no que tange à selecção, transcrição e estudo das obras centrais, das investigações conducentes ao Doutoramento de Diana Vinagre em Musicologia Histórica, retoma, contudo, o repertório abordado pela primeira vez no ano transacto com Os Baixos Sumptuosos: Música Sacra da Capela Patriarcal no limiar do séc. XIX, dando-se coincidentemente numa data quase idêntica e, felizmente, no mesmo lugar privilegiado, a que oportunamente procurámos, neste espaço, prestar a mais do que merecida atenção.
Debruçando-se de novo, com excepcional preeminência, sobre um repertório sacro que reflecte a invulgar – é lídimo dizer-se única – constituição instrumental da Capela Patriarcal até ao dealbar do século XIX (uma perfeita “orquestra de baixos”), logrou o Ensemble Bonne Corde algo que não consideraríamos possível ouvindo o concerto ali apresentado um ano antes: transportando, uma vez mais, o público, numeroso e atento, a uma época marcada por tão rápidas e acentuadas revoluções estéticas, com a mestria e autenticidade próprias dos grandes intérpretes, não deixaram, a nosso ver, de conseguir emular o programa anterior, o que não podemos senão considerar extraordinário.
De forma idêntica, então, às perspectivas que informaram a concepção de Os Baixos Sumptuosos, as obras aqui apresentadas em estreia moderna foram extraídas de códices manuscritos actualmente preservados no Arquivo da Sé Patriarcal de Lisboa, na Biblioteca da Ajuda e na Biblioteca Nacional, em Lisboa, onde se preservam verdadeiros tesouros da produção de autores como António da Silva Gomes e Oliveira, António Joaquim Miranda e José do Espírito Santo Oliveira (ca. 1760-1819), que apenas agora começam ser resgatados de um esquecimento a que foram injustamente votados desde há dois séculos. A par destas – andamentos solísticos provenientes de duas missas, um Dixit Dominus e um responsório –, e retomando uma prática setecentista bem documentada, figuraram obras puramente instrumentais de autores célebres, que circulavam em Portugal em datas extremamente próximas das publicações originais: Étienne Ozi, Stefano Galeotti ou Ignaz Pleyel, compositores da máxima importância na história do desenvolvimento dos seus instrumentos, no que concerne quer a aspectos técnicos, quer organológicos, mas também, o que é menos óbvio para todos, de obras belíssimas, dada a extrema raridade com que, ainda hoje, são apresentadas publicamente ou objecto de gravações discográficas.
Para este concerto, contou o Ensemble Bonne Corde com as interpretações de duas das mais extraordinárias cantoras portuguesas do nosso tempo, Ana Quintans e Eduarda Melo, que tiveram a seu cargo as obras portuguesas em estreia moderna. Música de grande sofisticação, em primeiro lugar, pela textura inovadora que a “orquestra de baixos” da Patriarcal permitiu desenvolver, mas também pela invenção melódica, marcada por um constante virtuosismo de matriz clássica, em que as partes vocais, não raro de extrema complexidade, são colocadas no topo de uma esmerada construção dialógica onde é empregue grande diversidade de recursos retóricos no concernente à disposição do discurso musical. Exemplo perfeito deste apuro de escrita, do labor limae do compositor sob esta perspectiva, é o admirável Laudamus Te, para dois sopranos, da Messa obligatta [sic] a due Violoncelli e due Fagotti de António Joaquim Miranda (Lisboa, Biblioteca da Ajuda, 48-VI-13), com que se iniciou o concerto: o problema da composição musical sobre um texto incessantemente iterativo é abordado através do recurso quer a entradas sobrepostas e sucessivas, quer a retardos acentuados sobre novos incisos em diferentes vozes, quer ainda às possibilidades decorrentes do cruzamento recíproco de motivos musicais entre as vozes solísticas e as partes graves, servidas por instrumentos de tão grande riqueza tímbrica. Junção mais sublime não seria possível obter senão pela associação destes à dicção perfeita, à técnica saudável e exemplar e à variedade da expressão alcançada pelas vozes contrastantes das duas notabilíssimas cantoras que ouvimos, adequadas na perfeição a este repertório, com o mais absoluto domínio da técnica fundamental da messa di voce e da coloratura que frequentemente deixou o público incrédulo. Não podemos deixar de referir o momento sublime que a feliz concorrência da capacidade de apropriação do discurso musical e da beleza do timbre – para que todos os adjectivos são escassos – de Ana Quintans possibilitou, aquando da interpretação do solo de soprano do Primeiro Nocturno dos Responsórios para a Festividade de Santo António, uma ária de concepção a todos os títulos brilhante sobre texto de um passo de São Mateus, da autoria de José do Espírito Santo Oliveira.
Merecem, a este propósito, o nosso maior aplauso os restantes intérpretes de excepção que deram vida a esta música de matizes sonoros tão inesperados. Em primeiro lugar, Diana Vinagre, que dirigiu do violoncelo o Ensemble Bonne Corde, evidenciando uma vez mais as qualidades que lhe são unanimemente reconhecidas: ao longo de quase duas horas de concerto, do controlo das mais imperceptíveis gradações dinâmicas nos acompanhamentos orquestrais aos excursos mais virtuosísticos dos momentos a solo, nunca se ouviu à grande violoncelista a mais leve imprecisão de estilística musical ou a menor hesitação na expressão da frágil linguagem do Classicismo, sempre proferida com admirável sofisticação de fraseio, que se diria resultado da naturalidade da expressão característica do precedente Estilo Galante; tudo quanto, associado a um absoluto domínio do palco, nos leva a considerar este concerto uma perfeita lição de estética e interpretação musical. O Adagio da Sonata II de Stefano Galeotti, para violoncelo e baixo contínuo, constituiu, sob esta perspectiva, um daqueles felizes momentos em que foi tangível a suspensão da respiração colectiva do público – algo que apenas os grandes intérpretes têm a capacidade de provocar.
Refiramos ainda a expressividade e a precisão de Benny Aghassi, que nos indicou, desde o equilíbrio singular com que fez soar a primeira frase do Laudamus Te inicial, que este seria um concerto raro, cada frase longamente excogitada para que viesse a ser ouvida com a naturalidade de um discurso improvisado, ou o baixo contínuo realizado ao órgão com a mestria de Miguel Jalôto, que nos deu também a ouvir, interpretadas com grande sensibilidade, duas obras virtuosísticas de Mozart para órgão, entre as quais o celebrado Andante KV. 616, em que a escrita do compositor se aproxima, partindo de um motivo ilusoriamente simples, dos mais complexos momentos concertísticos da obra para piano.
De uma palavra bem diferente, que infelizmente não podemos evitar, deslustrando o ambiente laudatório que tem tão justamente marcado estas nossas breves linhas, é merecedora a Direcção da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pela concepção e preparação dos programas de apoio ao espectáculo. Resultado de um trabalho sob todos os aspectos incurioso, são apresentadas ao público de um concerto tão excepcional brochuras em que proliferam as incorrecções de tradução e revisão (particularmente evidentes nos casos de textos mal vertidos do inglês), a par de inumeráveis erros de redacção e sintaxe, num português truncado pela tentativa frustrada de aplicação do chamado “acordo ortográfico” de 1990 (na mesma página coexistem palavras com étimos idênticos grafados de duas formas distintas, vocábulos que nenhuma norma ortográfica sequer prevê, a mesma palavra com grafias diferentes e outras incoerências ainda mais graves quanto são evidentes as marcas de terem sido os textos originais escritos em português correcto). Além de recordarmos à SCML que a adopção desta proposta ortográfica em Portugal por instituições públicas tem sido considerada ilegal por numerosos juristas de referência, além de objecto da rejeição liminar pela comunidade académica e científica (recentemente pela própria Academia das Ciências), não podemos senão lamentar que uma instituição que procura apresentar-se, através desta Temporada, como vocacionada para a defesa e promoção do património musical português promova, inversa e activamente, a destruição da Língua Portuguesa através da Ortografia, ignorando porventura que é a Língua o nosso património identitário mais antigo e mais importante e esquecendo com certeza as suas responsabilidades sociais e culturais para com a salvaguarda – quando não mesmo a defesa – desse património. É nosso dever aconselhar veementemente a SCML a imprimir os textos referentes à 28.ª Temporada Música em São Roque, em 2016, em português correcto.
Regressando aos aspectos artísticos em apreço, não nos resta senão esperar que este programa – aliás, o conjunto que forma com Os Baixos Sumptuosos – possa ser objecto de uma gravação discográfica com a maior brevidade possível, o que constituiria um assinalável contributo para o conhecimento e a divulgação da Música Portuguesa do séc. XVIII: prova de uma realidade que não devemos deixar de ter presente, que é a da prevalência inevitável de quanto nos resta ainda por conhecer sobre o que efectivamente conhecemos do que foi a nossa música nos séculos que nos precedem. Do mesmo modo, consideramos imprescindível que as obras aqui apresentadas em estreia moderna possam beneficiar de um criterioso trabalho editorial, por forma a que estes autores, hoje praticamente desconhecidos, possam ser restituídos ao lugar que lhes cabe ocupar na História da Música Portuguesa.
Lançamos, ainda, renovada e mais directamente o repto aos responsáveis pelas instituições culturais portuguesas – desde salas de espectáculos a festivais de Música e instituições religiosas – para que tornem possível que um programa tão singular como este possa repetir-se noutras salas e perante outros públicos, que assim possam ouvir um repertório tão fascinante pela primeira vez. Estamos certos de que, tal como para nós, para os privilegiados que estiveram a 18 de Outubro de 2015 em São Pedro de Alcântara, em Lisboa, será este um concerto que nunca esquecerão.