Composta por Johann Sebastian Bach por ocasião da Semana Santa de 1724, a Paixão Segundo São João (BWV 245) foi executada pela primeira vez em Leipzig, onde o compositor era Kantor da Igreja Luterana de São Tomás e director musical da cidade.

Este oratório apresenta características marcantes da música Barroca e, mais especificamente, do estilo pujante de Bach. Trata-se de uma obra grandiosa que narra a crucificação e morte de Cristo e aponta para sua ressurreição a partir do Evangelho de São João. Nos coros é possível identificar refinados contrapontos e fugas, enquanto nos corais predomina a austera homofonia, ambos tão característicos do estilo bachiano.

Obra fundamental na literatura musical ocidental, a Paixão Segundo São João foi levada ao palco do Theatro Municipal de São Paulo nos últimos dias 14 e 15 de Abril, celebrando a Semana Santa. Sob a genial condução do maestro Roberto Minczuk, estiveram a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, o Coral Paulistano Mário de Andrade e o Coro Contemporâneo de Campinas, além dos solistas Gustavo Quaresma (Evangelista – Tenor), Daniel Lee (Jesus – Barítono), Leonardo Pace (Pilatos – Barítono), Manuela Freua (Soprano), Carolina Faria (Mezzo-soprano), Gilberto Chaves (Tenor) e Pepes do Valle (Baixo).

Roberto Minczuk, premiado maestro de carreira internacional, demonstrou um entendimento profundo e segurança em sua concepção da obra. Fugindo do purismo de interpretações que se dizem fiéis ao estilo (mas que muitas vezes apenas reproduzem gravações famosas), Minczuk explorou a fundo as potencialidades musicais que uma obra da magnitude da Paixão Segundo São João possui. E isso pode ser observado logo no primeiro coro, “Herr, unser Herrscher, dessem Ruhm in allen Landen herrlich ist!”. Se, na primeira vez, as vozes anunciam o Senhor com uma sonoridade incisiva e penetrante, na repetição o maestro Minczuk extrai um som mais pesado e sostenuto do coro, como que clamando aos céus em tom piedoso, prenunciando o momento que se seguirá: coisas que somente com uma sólida compreensão da obra se é capaz de realizar.

Sobre o Coral Paulistano Mário de Andrade, pudemos apenas constatar o já sabido: este é, de facto, um dos melhores coros de São Paulo. A maestrina Naomi Munakata tem feito um trabalho de alto nível com o grupo, e isso pode ser visto na qualidade e precisão com que executou os coros da Paixão Segundo São João – com destaque para a articulação e clareza dos contrapontos do coro Lasset uns den nicht zerteilen.

Já o Coro Contemporâneo de Campinas, regido pelo maestro Angelo Fernandes, mostrou que, embora seja um grupo de estudantes (alunos de graduação e pós-graduação em música pela Unicamp), tem plenas condições de realizar um programa dessa magnitude. Ao longo das últimas semanas, o grupo realizou uma série de concertos da Paixão pelo interior do estado de São Paulo, juntamente com a Orquestra Barroca do Departamento de Música da Unicamp, sob regência do maestro Carlos Fiorini. A partir destes concertos, surgiu o convite para que o Coro Contemporâneo de Campinas integrasse o programa da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, marcando assim sua estreia no Theatro Municipal de São Paulo.

Há que destacar também alguns solistas. Posicionado no alto de uma frisa ao lado direito do palco, o tenor Gustavo Quaresma deu vida a João Evangelista através de sua voz clara e precisa. Já o barítono Daniel Lee interpretou magnificamente o papel de Jesus, completamente memorizado e com uma profunda emoção, valorizando cada passagem nos seus mínimos detalhes. Por fim, a mezzo-soprano Carolina Faria trouxe uma interpretação tocante da ária Es ist vollbracht, potencializada pela iluminação intimista que criou um momento único de introspecção e emotividade.

Casa cheia e longos e calorosos aplausos nas duas récitas. São Paulo é, de facto, uma cidade que transborda cultura e que cada vez mais se firma como um centro de excelência musical no cenário internacional.


A programação completa da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo e do Coral Paulistano Mário de Andrade pode ser encontrada no sítio http://theatromunicipal.org.br/. Já para acompanhar as actividades do Coro Contemporâneo de Campinas, deve-se acessar o sítio https://www.corocontemporaneo.com.br/.

Sobre o autor

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Fernando Magre é doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Música pela Universidade de São Paulo (2017), Especialista em Regência Coral (2015) e Licenciado em Música (2013) pela Universidade Estadual de Londrina. Desenvolve pesquisa sobre a obra de música-teatro do compositor brasileiro Gilberto Mendes. É colaborador do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Lisboa), onde realizou parte da pesquisa de Mestrado entre 2016 e 2017, sob supervisão da Prof. Doutora Maria João Serrão. Como musicólogo, tem participado de conferências no Brasil e no estrangeiro, com destaque para as conferências do RIdIM de 2015 (Columbus) e 2016 (São Petersburgo), Conferência Essence and Context (Vilnius) em 2016 e EIMAD – Encontro de Investigação em Música, Artes e Design (Castelo Branco), em 2017.