No âmbito do ciclo de concertos de Páscoa, a Orquestra Barroca da Casa da Música apresentou, no passado dia 27 de Março, na Sala Suggia, um belíssimo concerto com obras provenientes de várias geografias, mas praticamente todas situadas em dez anos bastante frutíferos do séc. XVIII (1714-1724). A excepção foi o Stabat Mater de José Joaquim dos Santos, obra de 1792 – ou editada nessa data, sendo a única obra sacra publicada em Lisboa na segunda metade deste século, como nos lembra o texto de Fernando Miguel Jalôto que acompanhou o programa de sala – conhecida pela utilização pouco habitual de apenas duas violas e um violoncelo para o acompanhamento das três vozes solistas.

É impossível não ouvir os ecos da obra-prima homónima de Giovanni Battista Pergolesi logo desde o início deste Stabat Mater, embora seja também perceptível a passagem de praticamente seis décadas entre ambas as composições, anos esses repletos de influências clássicas e até algum rasgo precursor do Romantismo. Para uma obra que descreve o sofrimento de Maria assistindo à Crucificação, é curiosa a utilização preferencial de harmonias no modo maior, o que confere a toda a obra (logo a partir do segundo andamento) uma leveza muitas vezes paradoxal face à narrativa textual. É de destacar o curto fugato cromático (Amen) que encerra esta obra, momento algo surpreendente atacado a partir do andamento anterior, que foi – como aliás toda a obra – interpretado com extrema elegância pela orquestra dirigida a partir do órgão por Laurence Cummings.

As duas linhas de soprano foram cantadas por Rowan Pierce e Joana Seara, cuja fusão tímbrica foi essencial para a fruição harmónica dos andamentos corais deste Stabat Mater (ao contrário do que tinha acontecido na primeira obra do programa, a terceira Leçon des Ténèbres, de François Couperin). Ambas as cantoras tiveram prestações igualmente seguras nas suas árias, às quais poderá ter faltado, por vezes, alguma energia para diferenciar momentos especiais, requerentes de alguma fantasia. O barítono Josep-Ramon Olivé, que contou apenas, além das intervenções conjuntas, com uma ária no nono andamento, Fac ut portem Christi mortem, teve também uma presença sólida e competente, na qual sobressaiu a beleza da emissão quando na sua região aguda. Uma nota final, nesta primeira parte (até porque este problema parece ter sido corrigido ao intervalo), para uma iluminação algo descontextualizada do objecto sonoro, cujas cores iam por vezes sendo alteradas em alguns andamentos, mas que julgamos serem demasiado presentes e até cansativas para o público.

A segunda parte começou com o ponto alto da noite: uma interpretação muitíssimo bem conseguida do sempre impressionante moteto In furore iustissimae irae, RV 626, de Antonio Vivaldi. Rowan Pierce mostrou um domínio praticamente absoluto da exigente coloratura pedida pelo mestre veneziano, sempre com uma presença tecnicamente descontraída, mas expressivamente exuberante, a que o público não ficou indiferente. Bravíssima! 

Continuámos depois em Veneza, desta feita para escutar um concerto para dois oboés de Tomaso Albinoni (op. 9, n.º 3, em fá maior, com cordas e contínuo). Foram solistas Pedro Castro e Andreia Carvalho, que uma correctíssima execução técnica e uma sintonia perfeita nos diálogos sugeridos neste estilo de concerto duplo, sobretudo no andamento lento central. Os oboístas integraram depois a orquestra para o final do concerto, com a música extraordinária de Georg Friedrich Händel, nomeadamente alguns excertos da conhecida como Paixão de Brockes, HWV 48. Foi aqui particularmente visível a eficácia da direcção de Cummings, que trabalha detalhadamente a mestria na colocação do texto e a riqueza contrapontística deixada pelo compositor alemão, à época já radicado em Londres. Os três solistas estiveram bastante bem: destaque-se a primeira ária cantada por Joana Seara, Der Gott, dem alle Himmelskreise. Foi pena que se tenham ouvido apenas oito excertos desta obra magnífica, o que compreendemos perfeitamente dado o já extenso alinhamento, e que se resolveu de forma simpática com a inclusão do número coral final (em que o próprio maestro cantou a linha do tenor). Para de alguma forma colmatar essa circunstância, e quase como uma continuação deste excelente concerto de Páscoa, aqui deixamos uma gravação para a obra completa:

Boa escuta!

Sobre o autor

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Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.