Sobre música, por que razão dizer algo? Se música é linguagem, fala por si. Se não, por qual motivo, então, alguém iria insistir em dar-lhe o apoio adjacente da linguagem? Por outro lado, a poesia, ela mesma, parece insinuar que poderia fazer-se toda de sons e sensações. Sem a palavra, enfim, da poesia restaria música? Ou o quê?
Talvez essa linha-do-meio, que não é nem música nem poesia, explique muito sobre o porquê de insistirmos tanto em falar sobre essa capacidade que têm os sons de arranjarem-se em movimentos coalescentes de bruta física (acústica), força (sensação) e memória (sentimento). Aquilo que não-há de música na poesia, e aquilo que não-há de palavra na música; esse entre que, no fim das contas, reflete o drama conteúdo-expressão de que nos falam Deleuze e Guattari. Corpos e enunciados em um jogo de territorialização, desterritorialização e reterritorialização: eis um entendimento desses mil ou mais platôs que chamamos Mundo, onde a música, a poesia e a linguagem se inserem como vetores marcantes.
É certo que a linguagem dá um território à música. Mas esta também já o faz, por si. Não é este o caso, por exemplo, dos procedimentos estocásticos de Xenakis que, em seus padrões de definição aleatórios, constrói monumentos musico-arquitetônicos? Ou, então, das digressões musicais do Barroco, isentas ainda de uma aplicação mais formalizada do tonalismo que ia afinal mais ou menos ali definir-se, e seus — já que estamos em território Deleuzo-Guattariano — blocos de sensação? Por outro lado, o que há de música, na poesia, faz desta fugir coisas, desterritorializa. Mas a própria linguagem também já o faz. Basta ver exemplos corriqueiros de como, rapidamente, o tempo todo, enunciados ou mesmo palavras isoladas são dobradas sobre seu próprio significado, sem mesmo precisar de partir para a seara poética (o inusitado universo dos memes da internet faz piada disso a todo instante, com o apoio, nesse caso, da imagem).
Esse jogo de des-re-territorialização entre música e palavra, abordado imensamente por tantos autores (mesmo que em outros termos), é o que constitui essa linha-do-meio. Um não-há da linguagem com a música e um não-há da música com a linguagem. Estamos tratando, então, da música e seus incompossíveis. Segundo Walter Smetak, “falar sobre música é uma besteira, mas executá-la é uma loucura!”. Ou seja, não estaria melhor amparado aquele que faz música, evitando falar sobre ela. Afinal, o que seria essa besteirinha a mais, se alguém comete aquela loucura? Música e palavra como incompossíveis, desta maneira, ao comunicarem-se em seus negativos (besteira, loucura) e positivos (falar, executar). Um não-há de um no outro que faz as engrenagens dessa máquina girarem, funcionarem.
Incompossíveis são, enfim, também a prática e a teoria da música. E continuamos, aqui, na mesma zona, pois a teoria é também um esforço de fala sobre a música, com a música. Paulo Costa Lima traz isso no bojo de seu conceito de “composicionalidade”. Aquilo que tem a capacidade de ser composicional envolve sempre uma indissociabilidade entre a prática compositiva e seus “outros” — a teoria sendo feita de uma série de contingências simbólicas inseparáveis do fazer criativo (e, aqui, entende-se que isso se estenderia a todas as práticas criativas, não somente à composição musical, tal qual tradicionalmente esta se configura).
Mas a música também é um método de fala, uma vez que tem base de entendimento e compreensão do cosmos, da educação e do estado social. Ela é, portanto, ainda um meio para a linguagem, um corpo ao longo do qual os corpos da linguagem, da filosofia e das ciências (de outras eras ou desta) são capazes de falar. Nesse sentido, temos uma vez mais que a linguagem não só fala sobre a música, mas também pode falar com a música, comunicando-se com suas lógicas internas. E, aqui, estamos mais uma vez no domínio daquilo que está entre, a linha-do-meio ao longo da música-linguagem que, ao mesmo tempo, abunda e falta à poesia.
As relações possíveis — e as impossíveis — entre música e linguagem passam ainda pela relação daquela com as próprias línguas. Quanto já se debateu, no passado, sobre qual seria a língua mais apropriada para a ópera? Ou a canção? Quantas óperas existem mesmo no idioma galego? Como soaria uma cantata nheengatu? Ou melhor, como soaria Wesley Safadão em língua alemã? E essa relação não pára aí, no fundamento da canção. Podemos estender essas perguntas ao campo da teoria, desse ‘seu-outro’ do fazer-música. Existe uma língua mais apropriada que outra para se fazer teoria? Para se falar sobre música? Que língua seria capaz de tornar mais fluida essa comunicação da filosofia com as lógicas internas da música? Como fica a teoria de Boécio traduzida para quechua? Adorno para o português?
As línguas apresentam suas lógicas próprias, suas máquinas musicais de funcionamento interno e coesão de pensamento. Espinosa, em sua conhecida correspondência com o pastor e comerciante holandês Willen van Blijenbergh, dizia que “gostaria muito de poder escrever na língua em que fui educado, pois poderia expressar melhor meus pensamentos.” E, vejam só, muito provavelmente esse idioma era o português…
Uma possibilidade de haver uma ópera escrita em quechua é algo importante pois há, nisso, uma chance de movimentar, em música, certos aspectos de uma lógica e de um pensamento musical quechua. Uma teoria da música escrita em nheengatu seria de igual interesse. Escrever e publicar em língua nativa — o que é diferente ainda de traduzir uma obra de uma língua para outra — não é uma questão, apenas, de estabelecer um público-alvo, de determinar um universo possível de leitores. É pôr em movimento, junto com o fazer-música e com o esforço de teoria que ali vai sendo escrito, os modos de funcionamento do próprio pensamento, atualizado naquela língua e através de suas engrenagens, lógicas e nuanças. Isso se demonstra desde o mais óbvio aspecto, como por exemplo o campo de assuntos escolhidos e das pautas, até outros mais velados, como a sutil escolha de termos descritivos, a tradução imperfeita de excertos referenciados de outras línguas, ou ainda o próprio ritmo interno de frases, orações, suspensões…
Dessa forma, escrever e publicar sobre música em uma língua como a língua portuguesa é um ato não somente de inclusão dos cidadãos dos vários países lusófonos não falantes de línguas mais globalmente faladas — e precisamos lembrar, aqui, que a maioria dessa população se encontra em zonas de grande desigualdade social e, portanto, instabilidade de padrão educacional —, mas também de resistência.
Frente à grande e crescente pressão de publicação em língua inglesa, um periódico como a Glosas vem para nos atentar dessa necessidade que os esforços reflexivos e discursivos sobre música têm de ter diversidade em nível próximo ao que nos é apresentado pela prática musical em si, pela construção de música variadas, qualidades variadas, critérios variados, por uma crítica e uma teoria tão rica quanto o são os múltiplos fazeres musicais em cada paragem do mundo.
Vida longa à música, à crítica e à teoria musical lusófona! Vida longa à Glosas!
Textos escritos no âmbito
do 10.º aniversário do MPMP