É sempre um prazer visitar o belo teatro oitocentista eborense, o Teatro Garcia de Resende, um dos mais nobres teatros portugueses ao estilo italiano. Quando soubemos que acolheria uma produção da ópera Porgy and Bess do compositor norte-americano George Gershwin (1898-1937), raramente apresentada em Portugal, não hesitámos em estar presentes. A produção levada a palco no passado domingo, 24 de outubro, foi uma iniciativa da Associação Eborae Mvsica, com direção musical do maestro Paulo Lourenço, um elenco de solistas nacionais, o Coro Polifónico Eborae Mvsica (com direção de Eduardo Martins), o Coro do Festival de Verão (Coro Participativo), e um ensemble instrumental de clarinete, contrabaixo, piano e percussão.
A ópera, com libreto de Ira Gershwin (1896-1983) e do casal Edwin Dubose Heyward (1885-1940) e Dorothy Heyward (1890-1961), estreada a 30 de setembro de 1935, no Colonial Theatre de Boston, foi apresentada em Portugal pela primeira vez no Teatro Nacional de São Carlos, em 12 de janeiro de 1973, e repetida logo no ano seguinte, no Coliseu dos Recreios. Do que conseguimos apurar, as últimas produções da obra em Portugal foram em 1999 no Pavilhão Atlântico, e em 2003 no Centro Cultural de Belém.
Nem o material publicitário do espetáculo publicado no site da Associação Eborae Mvsica, nem a respetiva folha de sala explicitavam que a obra iria ser apresentada em versão de concerto. De facto, na ficha técnica incluída nestes documentos, não constava qualquer menção a encenação ou cenografia. Só ao entrar na sala é que o público se apercebeu de que iria assistir a uma versão de concerto, ao ver um palco despojado, com um estrado para o coro e o canto esquerdo reservado ao ensemble instrumental. Nada o preparou para o que iria efetivamente assistir. Para além da referência à autoria musical e textual da ópera, a informação fornecida na folha de sala incluiu apenas os números musicais a apresentar, o elenco de cantores e instrumentistas e as respetivas notas biográficas. Não foi fornecida sinopse ou ensaio explicativo da obra, nem foi feito qualquer comentário introdutório ao concerto.
No Teatro Garcia de Resende, assistimos a uma versão desta ópera reduzida a cerca de uma hora (a primeira versão de Gershwin tinha a duração aproximada de quatro horas). Tratou-se de uma seleção de números musicais, sem recitativos, apresentados em versão de concerto, ainda que com um mínimo de ação cénica. O percurso de Porgy and Bess não é alheio a adaptações da sua estrutura, já que tem sido apresentada em palcos quer de teatros de ópera, quer de musical e, portanto, conformada às características e aos meios disponíveis em cada contexto. O mesmo maestro Paulo Lourenço já tinha dirigido versões semelhantes: uma seleção apenas dos números corais, em 2017, na Fundação Calouste Gulbenkian, e outra equivalente à do passado dia 24, em Ponta Delgada, no âmbito do Festival Música no Colégio de 2018, em que também participaram Sandra Medeiros, Manuel Rebelo, Bruno Almeida, André Rodrigues e o pianista Francisco Sassetti. (1)
No espetáculo levado a palco no último dia 24 de outubro, ficou evidente um conjunto de problemas de natureza dramatúrgica. Desde logo a indefinição quanto à execução ou não de ação cénica. A prática de ópera em versão de concerto tem-se tornado um recurso cada vez mais frequente em Portugal para fazer face, não apenas aos constrangimentos de segurança que a pandemia de Covid-19 tem exigido nos últimos dois anos, mas, sobretudo, ao perene subfinanciamento das instituições portuguesas dedicadas a um género com custos de produção inerentemente avultados — a começar pelo próprio Teatro Nacional de São Carlos. No caso desta produção de Porgy and Bess acresce a contradição entre a exclusão de números musicais, a eliminação de recitativos, a inexistência de cenografia e figurinos e, ainda assim, o recurso a desempenho cénico mínimo — apenas por parte dos solistas. Em suma, foram mantidas algumas pretensões dramatúrgicas, embora a inteligibilidade do curso da ação tenha sido irreparavelmente comprometida pelos avolumados cortes e pela inexistência de explicação ou sequer tradução do texto, em língua em inglesa, e num dialeto que pretendia recriar o Gullah das comunidades afro-americanas que representa. Cortes de secções à parte, este é um problema insanável de qualquer apresentação de ópera em versão de concerto. Ópera é um género teatral. Somado às particularidades de Porgy and Bess, o hibridismo desta apresentação tornam a sua análise bastante complexa.
Um primeiro aspeto a notar é o desempenho cénico do elenco na sua relação com a música. A interpretação musical de cada número foi acompanhada por circulação e movimentos em palco, incluindo momentos de interação entre personagens. Porém, a ausência de um conceito de encenação, somada à inexistência de cenografia e figurinos, acabaram por redundar em desempenhos estereotipados, reduzidos por vezes ao cliché. Por exemplo, tornou-se difícil distinguir a interação entre “Porgy” (a cargo do barítono Manuel Rebelo) e “Bess” (interpretado pela soprano Sandra Medeiros) em “Bess you is my woman” daquela que seria rotineiramente levada a cabo num dueto entre personagens de uma qualquer ópera de Verdi, tal era o caráter melodramático dos seus gestos e expressões faciais.
A interpretação de Porgy foi particularmente problemática na medida em que as opções cénicas adotadas por Manuel Rebelo resultaram muitas vezes caricaturais. Por um lado, devido a uma caracterização vocal da personagem excessiva no desempenho de passagens em forte — bastante evidente em “Oh Bess, oh where’s my Bess” — e deficiente quanto à projeção do registo grave. Por outro lado, os gestos e expressões faciais não contribuíram para uma compreensão clara da visão que tinha de uma personagem com a profundidade de Porgy, em que coexistem a vulnerabilidade da sua condição física e social, e a força da sua ética e dos seus sentimentos.
Quanto a Sandra Medeiros, a soprano continua a ter uma das vozes mais belas e tecnicamente consistentes entre as cantoras portuguesas. Contudo, há uma discrepância entre as suas características vocais e os requisitos da personagem Bess. O timbre predominantemente audível de Sandra Medeiros continua a ser o de soprano lírico, mas Bess aponta mais para uma sonoridade de tipo spinto. Não obstante todas as personagens desta ópera terem um acentuado pendor estereotipado, Bess não é uma mulher idealizável segundo os cânones de representação das heroínas das óperas do século XIX. Tudo apontou para que esta produção almejasse uma leitura mais ou menos literal do libreto. Neste sentido, Bess é uma personagem cuja mundanidade é muito evidente ou, por outras palavras, cuja humanidade é menos idealizada. A este respeito, importa dizer que, na sua génese, é também uma personagem intensamente misógina. Isto porque, desprovida de qualquer agência pessoal e, com isso, colocando-se à mercê das personagens masculinas (incluindo de Porgy), os libretistas criaram um espaço semântico que, para além da referida mundanidade, tem dado aso a que Bess seja muitas vezes conotada com a prostituição e os juízos de valor que lhe estão associados.
A interpretação de “Sportin’ Life” pelo tenor Bruno Almeida foi talvez aquela em que a dinâmica entre a componente musical e a caracterização gestual da personagem se deu de forma mais harmoniosa. De notar que, de todos os participantes, foi aquele cuja pronúncia e estilo mais se aproximou do musical americano, sem que a técnica de projeção operática tenha sido descurada. O mesmo poderá ser globalmente afirmado quanto à prestação de André Henriques como “Crown” e “Jake” que, ainda assim, à semelhança do restante elenco, não foi sempre fiel à pronúncia americana do inglês e muito menos do inglês vernacular afro-americano criado pelos libretistas.
A soprano Filipa Passos encarnou “Clara” e “Serena”. De facto, ambas as personagens estão dentro da sua tessitura, mas distinguem-se pelo lirismo da primeira e a expressão mais próxima do spinto, no caso da segunda. A classificação de interpretações fazendo uso deste tipo de categorias é obviamente discutível. Intérpretes como Leontyne Price ou Audra McDonald notabilizaram-se pelas suas caracterizações tanto de “Summertime” quanto de “My man’s gone now”. Embora o desempenho vocal de Filipa Passos tenha sido competente em ambas as árias, faltou-lhe intensidade dramática, sobretudo na segunda, e revelou uma linguagem corporal bastante rígida e fechada (por exemplo, cantou “Summertime” de braços cruzados na tentativa de a representar como canção de embalar, tal como estabelecido no libreto). A dificuldade em distinguir as personagens Clara e Serena não pode ser exclusivamente atribuída ao desempenho de Filipa Passos. Aliás, o mesmo se verificou no caso de André Henriques com Crown e Jake. O problema central está em atribuir personagens diferentes a um mesmo intérprete, sem o auxílio de caracterização ou de adereços.
Uma palavra relativa à intervenção da “Strawberry Woman”, interpretada por Fátima Nunes. Numa produção truncada como a apresentada no Teatro Garcia de Resende, talvez fosse importante repensar, senão a sua pertinência, os moldes em que decorreu. Trata-se de uma personagem sem particular relevância para a narrativa central. Na versão original, a sua função, num trio de vendedores ambulantes, é ajudar a suscitar a impressão de passagem do tempo, numa cena em que Porgy desespera pela recuperação de Bess que entretanto adoecera, cena essa que não foi incluída na produção de Évora.
Sobre o coro, a sua participação na narrativa perdeu-se por completo. Em vez de se constituir como a comunidade diversificada proposta na obra, a homogeneidade e parca intensidade da prestação relegaram-no a um plano meramente ilustrativo, exterior à própria ação. Ainda assim, pese embora algumas lacunas ao nível de dicção ou clareza de ataques, que acreditamos poderem ter sido resultado do uso de máscara facial, conseguiram-se momentos musicais bonitos, faltando-lhe apenas, como se disse, um maior engajamento, entusiasmo e contraste.
Quanto ao grupo de câmara constituído por Nélson Caetano no clarinete, Hugo Monteiro no contrabaixo, Francisco Sassetti no piano, e André Castro na percussão, apesar de um arranque difícil, tanto ao nível de execução técnica (pedais preguiçosos no piano, palheta fria no clarinete), quanto ao swing característico da linguagem jazzística da ópera, acabou por revelar-se satisfatório, tendo conseguido vários momentos de coesão. Não obstante, tão reduzido agrupamento resultou num volume musical despido, por vezes vazio até, que retirou quase tanto à partitura original quanto a ausência de encenação e cenografia. Além do mais, em tão reduzido agrupamento, qualquer falha ou desencontro mínimo se tornaram audíveis.
Apresentar Porgy and Bess não é só organizar um espetáculo ou, neste caso, não é só produzir um concerto. Esta ópera apresenta características únicas, e implica por isso um grande exercício de questionamento crítico e responsabilidade ética.
Voltemos às origens. Porgy and Bess é uma ópera escrita sobre comunidades afro-americanas na Carolina do Sul dos anos 1920. Como tal, o libreto (já como o romance que lhe deu origem) foi construído com base na percepção que pessoas brancas e privilegiadas tinham de comunidades sistemicamente marginalizadas e que viviam em situações limite de pobreza e negligência social. Ora essa percepção só poderia ser enviesada e homogeneizante, não só negligenciando o aspecto histórico do fenómeno que pretendiam retratar, como também sem a consciência crítica que o estavam a retratar justamente como um fenómeno, alheio de um olhar empático e humano. George Gershwin, que se celebrizou por introduzir elementos jazzísticos na música clássica, compôs música que achava representar essas mesmas comunidades, estilizando também musicalmente vários elementos rítmicos e melódicos alheios à linguagem musical da ópera. Se o contexto familiar dos irmãos Gershwin — uma família judia de origem russa — lhes dava alguma legitimidade para empatizar com outras comunidades consideradas marginais pelas elites norte-americanas, não os legitimava, porém, para tomar o lugar de fala das comunidades que a ópera retrata, incorrendo, por isso, na apropriação cultural. Afinal, a ópera caracteriza uma comunidade racializada de forma homogénea e redutora, recorrendo a clichés racistas vários: sexismo, violência, criminalidade, pobreza, trabalho sexual, consumo de drogas, apenas para referir alguns. E, não menos grave, ao invés de reproduzir o dialeto oral das comunidades Gullah da Carolina do Sul, estilizou-se um inglês vernacular afro-americano em que poucas comunidades se reviam. Desde 1935 que houve protestos vários e boicotes a cada produção da ópera, crítica que se tornou mais violenta ainda com os movimentos pelos direitos civis norte-americanos dos anos 1960-70. Na história da representação da ópera, muitos foram os artistas negros que recusaram fazer parte do elenco, pelo seu teor racista.
Mas a crítica mais visível à ópera foi talvez o maior reflexo da falta de consciência do racismo sistémico do seu tempo: focou-se no seu género híbrido. A indefinição entre ser uma ópera ou um musical dominou o debate público. Até aqui se percebe quão marginalizadas são as pessoas racializadas, cujos protestos contra o racismo da ópera foram quase invisibilizados pela comunidade musical.
Quando a ópera estreou em Portugal, já em 1973, repetiu-se a mesma dinâmica. Num Portugal bafiento ainda sob regime fascista, as dinâmicas raciais estavam praticamente ausentes do discurso público e, no máximo, recorreu-se ao uso do tropo do “exotismo” para comentar o espetáculo. A crítica musical portuguesa focou-se também na discussão sobre que género de espetáculo era, afinal, Porgy and Bess: ópera, musical ou opereta. (2)
Apesar destas nuances, que não é possível aprofundar num artigo de crítica musical, há um aspecto em que esta ópera se mantém intransigível: foi a primeira ópera a exigir um elenco negro — à exceção de um único personagem, um polícia — e, não obstante outros exemplos muito recentes, continua a ser disso exemplo único entre o repertório operático canónico. (3) Esta exclusividade de origem étnico-racial, tornada imposição legal pela cedência de direitos de reprodução, (4) resulta na criação de oportunidades para cantoras e cantores que, de outra forma, vão sendo subliminarmente preteridos em papéis operáticos protagonistas — e as exceções que conhecemos de cor só confirmam a regra.
Se podemos indagar a dinâmica perigosa que é ter um elenco negro atuando para entretenimento de um público maioritariamente branco — que ainda o é, nas casas de ópera das capitais europeias e norte-americanas — também devemos reconhecer que a existência de semelhantes papéis é fundamental para a transformação estrutural das elites musicais. Mas essa importância foi, no concerto do último dia 24, renegada, ao utilizar um elenco aparentemente caucasiano. Se lembrarmos que a ópera está escrita num (falso) inglês vernacular afro-americano, e que os dramas das personagens se pautam em grande medida pela segregação racial, aquilo a que assistimos foi uma espécie de black-face simbólico, ou seja, a simulação dos dramas e emoções racializadas da ópera, por parte de um elenco branco, que tem à sua disposição milhares de outros papéis para cantar.
Outro dos fatores que nos fez crer que assistiríamos à ópera completa no último dia 24 foi a utilização de um desenho com um casal negro no cartaz promocional. Ora se a ópera seria feita em versão concerto, sem caracterização e com cantores e cantoras caucasianas, porquê recorrer a este chamariz exotizante e enganador? Com este cartaz, a produção do espetáculo sublinhou o teor da alteridade étnico-racial da obra, apesar de ter acabado por boicotar esse mesmo teor.
Não queremos com isto sugerir que não se faça Porgy and Bess, mas que haja consciência crítica de que esta ópera tem uma origem e uma história que merecem ser respeitadas. Ademais, que os seus papéis principais devem sempre e em todo o caso ser interpretados por pessoas negras, quer seja uma real produção operática, quer seja em versão de concerto — como foi o caso.
___
(1) https://www.rtp.pt/play/p5616/e401677/musicanocolegio2018
(2) Ver: A crítica musical na imprensa periódica lisboeta nos últimos anos da ditadura em Portugal: 1970-1974, de João Romão, dissertação de mestrado em musicologia histórica, FCSH – Nova, 2012, pp. 41-45.
(3) Exemplos recentes particularmente relevantes são a ópera The Time of Our Singing, de Kriss Defoort (n. 1959), estreada em setembro deste ano no Théâtre Royal de La Monnaie / De Munt, e Fire Shut Up in My Bones, a primeira ópera encomendada pela Metropolitan Opera de Nova Iorque a um compositor negro, Terence Blanchard (n. 1962), que abriu a temporada de 2021-2022.
(4) Atualmente, os direitos de apresentação de Porgy and Bess são administrados pela empresa Concord Theatricals, que indica o elenco desta ópera como destinado a “Role(s) for Black Actor(s)”: https://www.concordtheatricals.com/p/44582/porgy-and-bess .