No último dia 10 de Maio ocorreu em Belo Horizonte, na Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, um concerto do Projeto VivaMúsica, coordenado por Margarida Borghoff e organizado por Cecília Nazaré e Flávio Barbeitas. Este concerto fez parte da programação cultural do colóquio internacional Escrita, som, imagem e da VI Jornada Intermídia, produzidos pela Faculdade de Letras daquela universidade, e contou com a participação de professores e estudantes de pós-graduação da Escola de Música.

Um programa bastante diversificado, mas que apresentou como fio condutor o diálogo da música com aspectos de teatralidade e visualidade, promovendo um espectáculo plurisensorial e absolutamente de acordo com a proposta do evento que integrava. Isso porque os estudos de Intermedialidade justamente se preocupam em investigar as relações que ocorrem entre diferentes media – meios de expressão, dos quais música, teatro, artes visuais e media electrónicos fazem parte. Nas palavras de Irina Rajewsky,1

Intermidialidade pode servir antes de tudo como um termo genérico para todos aqueles fenômenos que (como indica o prefixo inter-) de alguma maneira acontecem entre as mídias. “Intermidiático”, portanto, designa aquelas configurações que têm a ver com um cruzamento de fronteiras entre as mídias.

Assim, pode-se afirmar que estivemos diante de um espectáculo intermediático, na medida em que toda a sorte de signos esteve presente. O programa, quase inteiramente voltado para compositores brasileiros e para a música contemporânea, contou com a estreia mundial de duas composições.

Rua das Pedras, de Paulo Rios Filho, foi interpretada por Cristiano Braga, a quem a obra é dedicada. Esta delicada peça para guitarra solo apresenta uma rica exploração das sonoridades do instrumento, compondo uma paisagem onírica que remete às ruas capistranas tão características do interior mineiro, ainda preservadas. Belíssima interpretação de Cristiano Braga, professor da Universidade Federal do Maranhão, que demonstrou um conhecimento profundo da obra e das possibilidades tímbricas da guitarra. Além disso, esta composição ainda conta com a recitação de um poema pelo próprio guitarrista durante a interpretação, que constitui um contraponto com a parte musical, ao mesmo tempo em que contribui para reforçar o imaginário sobre esse lugarejo de pedras.

SK-GK bass on fire foi a outra estreia da noite. Composta por João Pedro de Oliveira para contrabaixo solo e projecção de vídeo, a obra foi interpretada por Fausto Borém. Apesar de explorar muitas sonoridades do instrumento, o aspecto mais interessante foi o original aproveitamento da grande superfície do instrumento para projectar um vídeo. A obra encerra com a projecção de chamas sobre o instrumento, imagem bastante instigante.

A guitarra ainda teve espaço na interpretação de dois andamentos da Sonata Op. 47 do compositor argentino Alberto Ginastera, por Stanley Levi. Obra interessantíssima da fase madura de Ginastera, esta sonata propõe uma ponte entre ritmos e sonoridades da música folclórica argentina e a linguagem contemporânea, com procedimentos da música dodecafónica, politonal e técnicas de aleatoriedade.2 Curiosamente, esta foi a única obra para guitarra de Ginastera.

O concerto ainda contou com canções brasileiras dos séculos XIX e XX, sabiamente distribuídos num programa repleto de obras contemporâneas. De Francisco Braga, foram executadas: Borboletas, Lágrimas de cera e Cantiga de amor, tendo Guida Borghoff ao piano acompanhando a cantora Mônica Pedrosa. Obras de um lirismo encantador e belissimamente interpretadas pelas professoras da Escola de Música da UFMG.

De Lino José Nunes ouviu-se a modinha Cupido tirando dos ombros, interpretada pelo contratenor Sérgio Anders, acompanhado por Marcos Maturro na guitarra e Fausto Borém no contrabaixo e assinando a autoria do arranjo. Dono de um belíssimo timbre agudo, Sérgio Anders apresentou uma identidade andrógina, jogando com características do universo masculino, com sua indumentária, e aspectos do feminino, ostentando um rosto maquilhado e uma performance cénica que, junto com a voz, reforçava tais características. Interpretação impecável que conquistou calorosos aplausos.

A actriz e pianista Jussara Fernandino interpretou o Estudo para Piano do compositor brasileiro Tim Rescala. Com humor pitoresco e ácido, Rescala evidencia nesta obra toda a insegurança, ansiedade e aspirações que fazem parte da prática musical. A pianista, no decorrer de seu enfadonho estudo de escalas e arpejos, tece comentários sobre seus desejos, oscilando ferozmente entre a excitação e a estafa. Jussara Fernandino fez uma interpretação divertidíssima, e a julgar pelas reacções dos estudantes de música na plateia, os anseios abordados por Tim Rescala nesta obra de 1989 continuam actuais.

Finalmente, falaremos da obra que abriu o concerto: Tanka II. É uma obra de 1973 do compositor alemão-brasileiro Hans-Joachim Koellreutter para piano e tam-tam (ou gongo grande) e voz declamada. Obra de grande experimentalismo, traz toda a filosofia proveniente da vivência que Koellreutter teve no Japão, misturado a um pianismo cageano (este também muito influenciado pela filosofia oriental).

A interpretação de Guida Borghoff (piano e tam-tam) e André Cavazotti (voz) foi primorosa. De pé em frente ao piano, Borghoff desenvolvia uma interpretação de gestos lentos e largos, remetendo ao tradicional Teatro Nô, enquanto explorava as cordas do instrumento com objectos diversos. Por sua vez, André Cavazotti (que iniciou a sua actuação deitado sob o piano) se arrastava pelo palco de forma grotesca até alcançar seu local de recitação, do outro lado do teatro. Entre gritos, balbuciações e gemidos por um lado e sons pontilhistas e ruidosos de outro, constituia-se um contraponto não apenas musical, mas também corporal. Corpos que reagem à música que produzem. Corpos musicais.

Através de uma iluminação especial, os corpos dos músicos-actores uniam-se num jogo de sombras projectadas numa tela branca ao fundo do palco. Espécie de teatro de sombras, salientando o forte orientalismo que constitui a obra. Confluência de estéticas, união entre povos, uma música que permite uma uma fascinante experiência sensorial.

O projeto VivaMúsica é parte integrante do Núcleo de Educação Musical e Cultura (NEMC) da Escola de Música da UFMG e em 2017 comemora 15 anos de existência. Para mais informações, clique aqui.


1 Irina Rajewsky. Intermidialidade, intertextualidade e ‘remediação’: uma perspectiva literária sobre a intermidialidade (trad. Thaïs Flores Diniz), Belo Horizonte, Editora UFMG, 2012.

2 Conforme analisa Charles King em sua tese de doutoramento, Alberto Ginastera’s Sonata for Guitar Op. 47: an analysis, The University of Arizona, 1992.

Sobre o autor

Imagem do avatar

Fernando Magre é doutorando em Música pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Música pela Universidade de São Paulo (2017), Especialista em Regência Coral (2015) e Licenciado em Música (2013) pela Universidade Estadual de Londrina. Desenvolve pesquisa sobre a obra de música-teatro do compositor brasileiro Gilberto Mendes. É colaborador do CESEM – Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (Lisboa), onde realizou parte da pesquisa de Mestrado entre 2016 e 2017, sob supervisão da Prof. Doutora Maria João Serrão. Como musicólogo, tem participado de conferências no Brasil e no estrangeiro, com destaque para as conferências do RIdIM de 2015 (Columbus) e 2016 (São Petersburgo), Conferência Essence and Context (Vilnius) em 2016 e EIMAD – Encontro de Investigação em Música, Artes e Design (Castelo Branco), em 2017.