Se a memória não me engana, conheci Joly Braga Santos em inícios dos anos sessenta e desde logo se estabeleceu uma ligação de simpatia e amizade que se desenvolveria durante um quarto de século, até ao momento da sua súbita morte. Eu era então um compositor principiante e ele uma figura reconhecida que se encontrava na consolidação da sua maturidade criativa, uma vez que a nossa diferença de idades era de vinte e dois anos.

Curiosamente, os nossos primeiros encontros realizaram-se enquanto críticos, pois eu já então escrevia crónicas para diversas publicações musicais ou generalistas e ele era, sem dúvida, naquele momento, o mais eminente crítico português. E realmente a crítica era a razão de muitos dos nossos encontros, pois ele frequentava pontualmente os festivais espanhóis para tomar conhecimento do que ali se passava e encontrávamo-nos por esse motivo. Naturalmente, ambos conhecíamos a condição de compositor do outro, mas no princípio, na verdade, desconhecíamos por completo as respectivas obras, ainda que pouco a pouco as fôssemos conhecendo até com bastante profundidade. De qualquer modo, os festivais de música e o trabalho crítico não impediam que falássemos muito de música e, desde logo, de composição.

Creio que, para além de admirar o músico, a primeira coisa que aprendi a admirar foi o ser humano. Joly Braga Santos era uma pessoa calorosa e afectuosa, de uma grande bondade e, para além disso, um homem muito culto, com o qual se podia conversar e reflectir sobre os mais variados assuntos. Recordo muitas noitadas de conversa animada no final dos concertos, especialmente nas Semanas de Música Religiosa de Cuenca, a que assistia todos os anos e onde, à parte os concertos, o tempo livre era abundante. Ainda assim, desde logo, não nos víamos somente nos festivais, mas também, outras vezes, em Lisboa ou noutra cidade europeia em que coincidisse estarmos ambos, devido aos nossos respectivos compromissos musicais. E não foi apenas de música que falámos.

Também conheci e apreciei no seu grande valor a sua esposa, Maria José, uma mulher culta, discreta, elegante e bela, que foi a pessoa que melhor soube entender e conduzir Joly. Porque, seguramente, conviver com Joly não era nada fácil. Não porque não fosse uma óptima pessoa, que o era, mas sim porque vivia absorto na sua música e vida interior e, por vezes, se desligava do mundo real em que vivia. Era muito capaz de batalhar diariamente com mil trabalhos musicais para sustentar a sua família, mas vivia o resto do tempo imerso no seu mundo criativo e não estava nada dotado para a vida prática diária. A sua mulher tratava dessas coisas, cuidava dele, e creio que foram um dos casais mais unidos e mais complementares que conheci.

Como compositor, Joly Braga Santos era um homem da sua geração, que nunca traiu os princípios estéticos em que se formou, mas que soube evoluir de uma forma muito clara. Conhecia muito bem a música e o amplo reportório do passado e a criação das pessoas da sua geração, mas estava igualmente muito bem informado de tudo o que faziam as vanguardas da sua época e apreciava-o independentemente de o praticar ou não. Um caso claro era a sua amizade e colaboração com aquele que era então o máximo representante da vanguarda portuguesa, Jorge Peixinho, e com quem se entendia muito bem. O mesmo apreço mútuo que eu e ele sentíamos um pelo outro. Joly Braga Santos conhecia a fundo a música portuguesa e esta interessava-lhe desde Freitas Branco, de quem foi aluno, até ao último jovem que surgisse ao seu redor. Contudo, isto não o impedia de percorrer o seu caminho musical a partir das suas próprias ideias e na sua própria linha. O seu pensamento sobre a teoria da composição e o estudo da mesma era muito rigoroso. Tive oportunidade de a ouvir detalhadamente numas Jornadas Musicais Luso-Espanholas que tiveram lugar em Lisboa nos anos setenta, baseando-se nalgumas premissas do pensamento de um compositor da vanguarda espanhola, Cristóbal Halffter, o qual Joly admirava incondicionalmente.

A música de Joly Braga Santos é, dentro das coordenadas estéticas em que se insere, bastante pessoal e original. Mais interessado numa posição neo-clássica que num nacionalismo radical, ainda que os motivos de inspiração portugueses não tenham faltado na sua obra, a maior parte da sua produção de um primeiro e amplo período preocupa-se sobretudo com uma linguagem modal na qual a arquitectura formal é importante e está

solidamente construída. Esta é a linguagem da Abertura Sinfónica ou da Sinfonietta; mais tarde, porém, o material expressivo do autor evolui até lugares onde o cromatismo tem uma importância maior e as técnicas se abrem a outras perspectivas, num trabalho que poderíamos chamar de síntese. Talvez o ponto culminante de tudo isto, e a obra de maior esforço sintético da sua carreira, seja a Sinfonia n.o 5, Virtus Lusitaniæ, que foi igualmente uma das obras mais bem recebidas do Maestro, pois não só foi distinguida pela UNESCO na sua Tribuna Internacional de Compositores, mas também se constituiu como uma das obras mais comentadas e apreciadas do compositor.

Joly Braga Santos soube também cultivar a música vocal, na qual procurou a nobreza da linha melódica e a inteligibilidade dos textos. A linguagem era importante para o discurso musical, como o demonstra o tratamento dos distintos poetas que abordou tanto em português (Camões, Pessoa), como em espanhol (Garcilaso de la Vega), e isto nota-se particularmente nas suas óperas. Compôs três, mas a mais notória de todas foi sem dúvida a Triologia das Barcas, uma obra muito original, já que assume musicalmente a particular estrutura dramática da obra de Gil Vicente, que pouco tem a ver com os libretos operáticos habituais. Graças a este facto, a obra distancia-se tanto da ópera tradicional como dos modelos operáticos habituais do séc. XX, convertendo-se numa interessante singularidade.

Na altura do falecimento de Joly Braga Santos, eu dirigia o Festival Internacional de Música Contemporânea de Alicante, onde se lhe dedicou uma sessão de homenagem. Interpretou-se o seu Concerto para violoncelo e orquestra, que tinha sido estreado pouco tempo antes em Lisboa. Foi um momento de grande emoção. Não só porque recordávamos o amigo que acabáramos de perder, mas também porque a nova obra se impunha pela sua própria magnitude, pela sua própria beleza e pela sua importância. Era o Joly de sempre e, ao mesmo tempo, um Joly novo, um passo à frente numa evolução que se desenvolvia tranquila, segura, sem correr mas também sem se deter. Este concerto é seguramente uma das maiores obras que nos deixou o compositor. Joly Braga Santos deixou-nos num grande momento de maturidade da sua carreira. Deixou-nos, para além disso, e considerando as estatísticas de hoje em dia, cedo, pois tinha apenas sessenta e quatro anos, quatro a menos do que tenho eu próprio, no momento em que redijo estas linhas. Creio que se encontrava num momento criativo cheio de plenitude e pode-se especular sobre o que poderia ter composto se tivesse continuado vivo. Estou certo de que teria escrito grandes obras, mas trata-se de pura conjectura, uma vez que as coisas aconteceram de outra maneira. Devemos concentrar-nos no Joly Braga Santos que existiu e que conhecemos: um homem bom, um ser humano de grande cultura, um professor valioso e um compositor de elevada categoria. Não choremos pelas obras que poderia ter escrito, antes usufruamos das que realmente escreveu. Ao longo da sua carreira, o nosso compositor deixou-nos uma série de obras valiosas. Recordemo-las e desfrutemos delas.

Diz-se que o ser humano só morre quando é esquecido. Joly Braga Santos não será nunca esquecido e viverá sempre entre nós. Nós que o conhecemos, porque conservamos a sua recordação valiosa; aqueles que vieram depois e não o conheceram, porque possuem o legado das suas obras, obras essas que pertencerão para sempre ao acervo musical e cultural de Portugal e do Mundo. 

Tradução do castelhano por Raquel Camarinha

Texto originalmente publicado na Glosas 3, 2011, p.35-36

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