Foi num sábado, 19 de Fevereiro, pelas 17h00, que o Centro Cultural de Belém acolheu o concerto Trânsitos como parte da Temporada Sinfónica do Teatro Nacional de São Carlos. As obras escutadas foram a abertura da ópera cómica L’Hôtellerie portugaise da autoria de Luigi Cherubini (1760-1842), o novíssimo Concerto para Violoncelo e Orquestra de Luís Tinoco (n. 1969) e a Sinfonia n.º 3, em Lá menor, de Felix Mendelssohn (1809-1847).
Escutar Luís Tinoco – representado pela sua música – será escutar o mundo em que vivemos de forma pura e inteira. Em última análise, a música escrita pelo compositor (vivo) reflectindo a posição do homem (nosso contemporâneo) no meio em que se insere. Concerto para Violoncelo e Orquestra define, inevitavelmente, o que significa escrever um Concerto nos dias de hoje. Assume a sua estrutura mais clássica na forma de três andamentos, com a particularidade de o 2.º e o 3.º serem executados sem interrupção. O compositor recusa o confronto directo de carácter entre as partes (uma relação óbvia entre movimentos, por exemplo rápido-lento-rápido), conferindo uma forma crescente na textura e um peso gradual na utilização do ritmo até à última secção da obra.
O primeiro andamento é caracterizado pela introdução do violoncelo como elemento solista através da cor predominante das cordas. Harmonias estáticas criam ambiguidades na textura, manchando o sentido de polarização em determinadas notas ou campos harmónicos rígidos, utilizando numa fase inicial o solista como parte integrante da orquestra. É então sugerido um processo de separação do indivíduo em relação à massa: ideias que nascem no violoncelo e ecoam pela restante instrumentação, sendo reproduzidas, desenvolvidas ou amplificadas. Sempre através de um diálogo íntimo entre as duas grandes forças da obra e também sugerindo como que um reflexo da relação entre compositor e intérprete.
A pequena pausa entre os primeiros andamentos poderá ser interpretada como uma curta respiração no discurso, uma forma de centrar novamente o foco no elemento solista. É ele que agora declaradamente se assume como impulsionador e gerador das ideias e gestos musicais. Em oposição à exuberância utilizada em contexto semelhante pelos seus antepassados, o compositor assume a técnica como uma necessidade para se exprimir, uma mera extensão da vontade criativa. As ideias complexas são justificadas pelo resultado orgânico entre o violoncelo que se destaca e o tecido orquestral.
A música começa então a desenvolver-se através de ondas cada vez mais intensas e mais densas de movimentações internas, culminando numa transição imperceptível para o último momento da obra, caracterizado pela predominância de gestos rítmicos curtos e espaçados. Gradualmente, começa a ser criado lugar para o silêncio, atingindo a peça o final em pleno.
Filipe Quaresma, a quem a obra foi dedicada, foi uma estrela mais do que brilhante nesta constelação de instrumentos. Como solista, foi obrigado em determinados momentos a ceder o seu foco natural em prol das restantes forças em jogo, mas sempre à altura quando o compositor exigia o melhor das suas qualidades técnicas e expressivas. De tal forma que a versatilidade e mestria do intérprete pareciam materializar com relativa facilidade a voz interior do compositor. Pedro Neves teve também um papel decisivo no que toca ao equilíbrio em constante movimento deste caleidoscópio musical. Inspirou uma Orquestra Sinfónica Portuguesa sempre presente, com a sua já habitual direcção musical rigorosa e muito cuidada.
Desde a estreia, as revisitações a este Concerto têm sido constantes na minha vida. A nostalgia da ausência de uma reposição para breve instala-se. O compositor fez a sua parte – criou uma obra ressonante com ecos claros da sua mão. O público acolheu-a com uma ovação de pé. É agora necessária a sua amplificação, a sua inclusão num período e espaço mais alargado. E neste caso, passado um mês, sobram reminiscências de uma obra extraordinária sem ressurgimento das suas cinzas (já arrefecidas) à vista.