Convidada a dar o meu testemunho sobre o projecto da revista Glosas e (ou) o que o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP) representa para mim, deparei com o desafio de reflectir sobre dois projectos maiores no que concerne à divulgação e promoção das actividades musicais e artísticas em Portugal nos séculos XX e, queremos nós, XXI. Debruçando-me amiúde sobre a música portuguesa, nomeadamente a música portuguesa contemporânea, e tendo necessidade de aceder a uma documentação base que, muitas vezes, se encontra dispersa, o projecto MPMP veio, de alguma forma, facilitar esse processo, pela forma como divulga e informa os seus utilizadores sobre alguns dos projectos e actividades que se vão realizando. Quando a minha investigação engloba não só a música como a arte e a educação, vejo-me muitas vezes confrontada com a inexistência de materiais e partituras impressas, registos áudio e vídeo das obras e propostas de projectos artísticos, de forma a poder reflectir sobre elas. Muitas vezes gentilmente cedidas pelos autores, quando a eles solicitadas, sou da opinião de que os materiais deveriam estar em acesso simplificado para que a sua utilização, o seu estudo e análise, se fizessem de forma mais rápida e eficaz.
Sabemos que o processo de edição em Portugal sempre careceu de incentivos e apoios. A publicação e distribuição de materiais referentes a novas obras, mormente aquelas representativas de uma actividade criativa em Portugal no século XX, carece de efectiva representação. Em outro, a via de disseminação de informação sobre este corpus de obras sempre foi escassa. Lembramos aqui as grandes instituições do nosso país no que concerne à prática de uma actividade artística, mormente a Fundação Calouste Gulbenkian com os seus Encontros de Música Contemporânea, um local de realização e fruição da nova música, mas… e os novos espaços de arte? E os novos géneros? E as novas propostas? Se houvesse uma atitude mais combativa no que concerne à edição e publicação de obra, o facto possibilitaria a sua utilização por parte dos estudiosos na matéria, mas também a intérpretes e melómanos, de forma a que o vasto património que possuímos, um património que se revela maior a todos os níveis da produção artística, se constituísse uma fonte de vida e conhecimento. Não deveríamos esperar pelo reconhecimento externo desse mesmo património para que somente aí seja relevado, institucionalizado, apoiado, e, por fim, reconhecido, estudado, divulgado e investigado.
Se já deparamos com algumas plataformas de divulgação de conhecimento, lembramos aqui o Centro de Investigação e Informação da Música Portuguesa (MIC), sob a coordenação de Miguel Azguime, plataformas que nos permitem um seu acesso e uma sua utilização, considero que este deveria ser alargado, não só em número, mas também no tipo de documentos nelas constantes. O esforço continua, neste caso, a ser tenaz. Contudo, e conscientes das reservas postas, questionamos se não se deveria constituir um arquivo digital nacional onde encontraríamos as partituras e os registos áudio e vídeo das obras, mas ainda documentação e informação existente, facto que promoveria a sua consulta, análise, divulgação e promoção, não estando os criadores e investigadores reféns do outorgar dos referidos materiais e espólios. Em outro, deparamo-nos com a não edição das obras, ou mesmo com a escassez de materiais disponíveis. Sabemos que em Portugal se promove uma realização única de obra, a sua estreia, sem, ousamos dizer, a indispensável edição da obra. De uma forma geral, as instituições, mas também os autores, clamam por realizações artísticas e por obra nova de forma a cativar um público, mas, quantas vezes, se mostram reféns de constrangimentos económicos, bem como de uma vontade esparsa, de uma inércia que somente mata e jamais vivifica. A nós de trabalharmos pela valorização de um património que é nosso, um património de inegável valor e relevância, mas que, como sempre, se encontra carente de realização.
É do conhecimento geral que o MPMP foi criado na urgência de dar voz a uma produção artística, promovendo a divulgação dessa produção e, consequentemente, de um património que de material e imaterial se mostra, se faz e diz. Este projecto, e à semelhança de outros dessa natureza, dá visibilidade à efectiva produção artística que se faz no nosso país e, que, fruto de condicionantes várias, se encontra esquecida nos arquivos das instituições e, quando não, dos próprios artistas. Quantos de nós já nos deparámos com um “procure aí”, um aí que se faz de uma pilha de documentos dispersos que exigem esforço e persistência constantes, um “procure aí” que se faz de um amontoado de informação que, de caótica, afasta a melhor das intenções. Acresce referir que a música portuguesa, tendo um número significativo de obras que são um importante legado para as gerações futuras, necessita urgentemente de ser classificado, promovido, divulgado e inserido em novos domínios do conhecimento, não só prático como teórico, bem como ao nível da ciência e das artes, mormente aqueles que englobam a formação e a educação dos nossos públicos. Neste sentido, propomos-mos uma constante reflexão sobre a música, a arte e a educação, bem como a forma de esta se colocar ao serviço de todos os agentes educativos.
Do conhecimento e reconhecimento dos referidos arquivos e espólios, de uma actividade investigativa que se queria divulgada, mas também de uma necessidade criativa que se fez maior, surgiu então um movimento, o MPMP, um movimento que aferiu da riqueza desses materiais, sejam eles as obras, os seus registos, as cartas, os escritos, etc., elementos que constituem o manancial de componentes de trabalho para criadores e investigadores. Sabemos que, de perdidos e esquecidos nos arquivos, se encontravam mortos. Desse achado, aperceberam-se então que “não se tratava apenas de descobrir tesouros antigos. Havia um trabalho fantástico a ser produzido por compositores da nossa actualidade”. Assim sendo, estavam criadas as condições para se pensar numa forma de os tornar acessíveis, por forma a serem estudados, divulgados e utilizados em novas formas de criação artística. Neste sentido, e numa reutilização, recriação, e, quando não, reformulação, enformaram-se novos espaços de arte que se revestem de um particular interesse para a formação e educação dos nossos públicos, mormente os mais jovens. Revisitados à luz dos novos meios de produção artística, alguns deles constituem-se em novos espaços de arte, dos quais os projectos multi e interdisciplinares, mas também o teatro musical e o teatro infantil, fazem parte.
Se a elaboração de um projecto multidisciplinar ou de um teatro musical supõe na sua origem a comunicação de uma ideia, onde conteúdos e linguagens, intenções e proposições, são abordados sempre com uma preocupação ética e estética, dada a sua natureza e extensão, por outro, a sua elaboração induz-nos o pensar que este pode ser usado como meio e ferramenta educativa. Neste sentido queremos aqui relevar o caso das propostas “A arca do tesouro” (2010), um pequeno conto musical da autoria de Alice Vieira e João Fazendo e música de Eurico Carrapatoso (editorial Caminho), mas também de “A menina do mar” de Sophia de Mello Breyner Andresen, com música de Fernando Lopes-Graça (numa primeira versão, 1961), de Bernardo Sassetti (numa segunda versão, 2019, edição da Valentim de Carvalho sob licença da Porto Editora), ou com guião e música de Edward Luiz Ayres d’Abreu (numa terceira versão, 2019, não editada). Se estas propostas e tipologias de obra são bastante apelativas para um público mais jovem, percebemos que, em realidade, são importantes para todos os públicos. Enformados enquanto objectos de arte, segundo princípios técnicos e estéticos distintos, promovem um conhecimento, uma formação e enformação, mas também a imaginação, a criação e a reflexão sobre um dizer, um fazer e uma arte.
Se ainda se verifica uma certa ambiguidade na definição de teatro musical, uma ambiguidade difícil de dissipar, já que as décadas de 60 e 70 do século XX foram um momento muito particular na história da música e da arte em geral, em outro devemos distinguir duas formas de abordar o seu conteúdo em música: o conteúdo história e o conteúdo referência. Com efeito, o conteúdo como resultado de uma história aproxima-nos subitamente da ópera, sendo que as histórias simbólicas e interpretáveis por mímicas ou bailados, as histórias contadas no domínio do abstrato da obra radiofónica, permitiram pôr uma espécie de filtro entre a história em si e o espectador. O conteúdo, quer se trate de uma ideia política, social ou existencial, direccionado a um público jovem ou adulto, será, acima de tudo, um denominador comum da representação e não um motor de uma acção ou de uma história; o conteúdo-referência. Na concepção da obra, está presente uma tomada de consciência pelo nascimento de uma compreensão actual, activa e social, solicitada junto do público que é obrigado a tomar posição devido à confrontação imposta com a sua realidade, seja ele uma criança, um jovem ou um adulto. Será que não o verificamos também nas obras mencionadas?
Em outro, o texto e a partitura, enquanto fontes de informação, sendo construídos a partir de histórias pré-enformadas, infantis ou outras, surgem como constituinte fundamental, sendo o elemento base para proceder a uma reflexão sobre conteúdos/mensagem e conteúdos/forma. Simultaneamente, o desenvolvimento da tecnologia e de novos meios tecnológicos de suporte à criação permite, através do uso de música ao vivo, mas também de outros elementos cénicos e musicais, pré-gravados ou não, desenvolver um outro tipo de acção em palco. O uso de um discurso de imagens, tornando-se recorrente, e factor indissociável ao desenvolvimento do “novo” teatro, encontra-se igualmente na produção de alguns autores portugueses que não lhe são, por isso, indiferentes. Veja-se as propostas aqui referenciadas no que concerne às duas versões de 2019 de “A menina do mar” de Sophia de Mello Breyner Andresen.
No processo educativo, estes elementos e factos são relevantes, elegendo-se elementos de progresso para o ser humano, tornando o produto educativo mais apelativo. Contribuindo de forma relevante para a produção do seu próprio conhecimento sobre as coisas, o espectador, o educador ou o estudante enforma o seu próprio saber de forma autónoma e responsável percebendo o porquê e o para quê desse mesmo saber. Assim, não só estas acções podem constituir-se em objectos de transmissão e vivência de conteúdos, como em objectos de arte que projectam ideias e ideais vários, despertando a todos de forma harmoniosa e efectiva. Por outro lado, a percepção e compreensão de uma narrativa, bem como os processos de composição experimentados, levam todos a interrogarem-se sobre aspectos importantes do fazer artístico e da obra de arte. Conceitos como forma e equilíbrio, interpolação e modelação, repetição e variação, paráfrase, citação, alusão ou paródia, mas também respeito, interacção, compreensão e inclusão, podem ser por todos repensados levando a indagação a uma transformação social e ética de inegável valor. Construir um conjunto de conteúdos que estão para além da simples informação notada, revelando o invisível da acção performativa, surgirá, no dizer de cada um e de todos nós, orientados pela mestria dos autores, agentes determinadores dos seus conteúdos primeiros, mas também na definição que conseguimos impor através desses mesmos signos e propostas do autor, aos objectos enformados, uma possibilidade de nos transformarmos através dos objectos arte. Para isso necessitamos do acesso às fontes, reafirmando a necessidade não só de um seu conhecimento, como de uma sua disponibilidade.
Se todo o processo de composição implica a interrogação constante, o questionamento, seja na escrita, seja na visualização ou na audição, seja ao nível dos conteúdos imagéticos delineados e propostos na interpretação, os processos de corte e continuidade, a sobreposição, sejam cenas contrastantes, linguagens várias ou modelos diversos, conduzem a resultados que alargam os horizontes de todos, desenvolvendo mecanismos de pesquisa e autenticidade, tanto na escrita, como na comunicação. De cabal importância para a aquisição de conhecimento, pois não se trata somente de encontrar, mas, acima de tudo, de recorrer a uma memória adquirida, uma memória que se mostra nas vivências de cada um, bem como no contexto geográfico em que se insere, o trabalho que implique a criação de um espeptáculo desta natureza, neste caso de teatro musical infantil, confronta-se com a elaboração do texto, da cena, dos momentos musicais e da encenação e teatralização do proposto. Levanta por isso questões sobre a maneira como se irão reflectir as noções de equilíbrio, forma, conteúdo, mas ainda sobre a natureza desse conteúdo e a forma como este é veiculado na sua essência ao espectador, neste caso um público jovem. Todas estas tentativas de construção e desconstrução visual, cénica, teatral e musical são o impulso necessário à procura de uma verdade, ao questionamento interior e à evolução de um pensamento. Todo o trabalho de pesquisa histórica e musical envolvidos neste processo surgem de cabal importância no processo, pelo envolvimento que aportam e, no final, pela efectivação de uma proposta espeptáculo, uma proposta que será sempre uma sua possibilidade, sempre um seu resultado.
A necessidade de promoção, divulgação e informação dos públicos leva à necessidade de construção de ferramentas necessárias ao processo. Nesse sentido, constitui-se a revista Glosas um meio de dar a conhecer não só essa informação, como todo um trabalho de investigação sobre a música e a arte portuguesa contemporânea (e não só). Cruzando artigos sobre compositores com artigos de opinião e outros de relevo para o seu formato e função, a revista Glosas apresenta-se com um formato aliciante, de leitura cativante, apresentando-nos a música e a arte de forma aliciante e com grande rigor. O trabalho desenvolvido por investigadores, musicólogos, analistas, intérpretes e compositores tem assim a oportunidade de ser divulgado e, consequentemente, estudado por todos aqueles que se interessam pela nossa música, permitindo o vivenciar, através da criação e divulgação de um património nosso, de momentos únicos de realização e fruição. Neste fazer, um património se mostra e diz, não se encontrando por isso esquecido nos arquivos, acervos, espólios e bibliotecas deste país, mas vivo, gerando novos espaços de som e arte. Muito obrigada.
Texto escrito no âmbito
do 10.º aniversário do MPMP