No passado dia 18 de Fevereiro, às 21h30, pudemos assistir a um concerto na Basílica da Estrela, em Lisboa, em que o Ensemble Vocal Desafinados apresentou duas importantes obras sacras da primeira metade do século XVIII, o Stabat Mater de Domenico Scarlatti (1685-1757) e Jesu, meine Freude, BWV 227, de J. S. Bach (1685-1750).

Começamos por salientar as marcadas diferenças estéticas entre estes dois compositores perfeitamente contemporâneos, mas separados pela herança estética, pelo ambiente cultural e pelos ensinamentos, que as suas obras, ambas extensíssimas e de inesgotável exuberância criativa, reflectem. Scarlatti, que compôs este Stabat Mater durante a sua estadia no Vaticano, como mestre da Capella Giulia, de 1714 a 1719, opta por uma divisão a 10 vozes (coro duplo) e baixo contínuo, num estilo solene que remete quase para o século anterior, utilizando linhas melódicas de contornos simples e jogos de imitação característicos. No entanto, a obra encerra diversas surpresas dentro deste ambiente forçosamente conservador, com surpreendentes inflexões harmónicas, por exemplo, que nos despertam, afinal, para inovadores caminhos de composição que vêm acusar a herança napolitana.

Domingo Antonio Velasco, Retrato de Domenico Scarlatti. Óleo sobre tela, 1739 (Alpiarça, Casa dos Patudos)

A obra é dividida em dez secções contrastantes, correspondentes às dez estâncias da narrativa mística que lhe serve de base, relatando o sofrimento da Virgem Maria durante a Paixão de Cristo. A música de Scarlatti – herdeiro privilegiado da mais bem estabelecida tradição operática europeia – é escrita servindo o texto na perfeição, numa comunhão exemplar consoante as diferentes ideias que veicula, e o Ensemble Vocal Desafinados conseguiu muito bem transmitir essas diferenças na sua interpretação. Dada a reverberação da nave principal da Basílica da Estrela, teria talvez sido benéfica a adopção de tempi um pouco mais lentos, sobretudo nas secções onde o contraponto cria texturas muito densas.

Na segunda parte do concerto, os Desafinados apresentaram uma leitura de grande vivacidade e interesse do motete Jesu, meine Freude, um dos seis escritos pelo mestre germânico, encomendado para o funeral de Johanna Maria Kees pela sua família. A escrita parte de uma formação a cinco vozes e com alternância entre as estrofes do hino homónimo de Johann Franck e passagens da Epístola de S. Paulo aos Romanos. É devida uma nota aos excelentes momentos de interpretação solística de vários dos cantores e à consistente interpretação do contínuo, ao órgão, realizada por Sérgio Silva – organista titular da Basílica da Estrela –, a que um eventual apoio de violoncelo seria um acrescento benéfico a considerar pelo grupo.

Ensemble Vocal Desafinados

Por fim, é já tempo de destacar o trabalho que o Ensemble Vocal Desafinados vem fazendo, ainda que de forma esporádica, no panorama da música coral portuguesa desde 2012, sob a direcção de Inês Lopes. A programação do grupo vem-se centrando essencialmente na interpretação de música coral alemã e portuguesa, tendo já estreado obras de compositores como Marcos Cerejo, João Barros, Miguel Jesus e Carlos Garcia, entre outros.

Em 2012 e 2013, o grupo desenvolveu, a par com um programa com obras de Johannes Brahms, um concerto com música de Eurico Carrapatoso, que veio a percorrer o País, com apresentações em Lisboa, Sines, Albufeira, Lagos, Guimarães, Ovar e na Madeira. Em 2013 e 2014, desenvolveram uma programação em torno da música germânica (Schutz, Bach, Brahms e Reger), seguindo-se, em 2015, a apresentação do Stabat Mater de Domenico Scarlatti, com que se iniciou este mais recente concerto (num alinhamento que tinha já sido apresentado no Ciclo de Órgão de Torres Vedras do ano passado).

Programa

Domenico Scarlatti (1685-1757) | Stabat Mater

  1. Stabat Mater dolorosa
  2. Cujus animam gementem
  3. Quis non posset contristari
  4. Eja Mater, fons Amoris
  5. Sancta Mater, istud agas
  6. Fac me vere tecum flere
  7. Juxta crucem
  8. Inflammatus et accensus
  9. Fac ut animæ
  10. Amen

Johann Sebastian Bach (1685-1750) | Jesu, Meine Freude, BWV 227

 

Ensemble Vocal Desafinados

Sopranos: Inês Lopes, Mariana Moldão, Sofia Vieira e Maria Meireles

Contraltos: Natália Ribeiro, Maria de Fátima Nunes e Adriana Rodrigues

Contratenor: António Lourenço Menezes

Tenores: João Barros, João Manuel de Barros, Rodrigo Carreto e Bruno Rodrigues

Baixos: Marcos Cerejo, Alexandre Gomes, Gustavo Lopes e João Costa


Pode seguir as actividades do Ensemble Vocal Desafinados aqui.

Sobre o autor

Imagem do avatar

Licenciado em piano pela Escola Superior de Música de Lisboa, na classe de Jorge Moyano, concluiu o Conservatório Nacional com a classificação máxima, tendo aí estudado com Hélder Entrudo e Carla Seixas. Premiado em diversos concursos, apresenta-se em concerto em variadas formações. Estreia regularmente obras de compositores contemporâneos. Gravou para a RTP/Antena 2, TV Brasil e MPMP: editou, em 2020, o CD “La fièvre du temps” em duo com Philippe Marques. É membro fundador do MPMP Património Musical Vivo, dirigindo temporadas e coordenando inúmeras gravações. Termina, actualmente, o mestrado em Empreendedorismo e Estudos da Cultura do ISCTE. Foi director executivo da GLOSAS entre 2017 e 2020.