Antes de iniciar a sua actividade de cronista, Júlio César Machado (1835- 1890) passou pelo Teatro do Ginásio. Aqui foi tradutor de várias óperas para a língua portuguesa, nomeadamente da ópera-cómica O Chalet (texto de Scribe, música de Adam). Machado descrevia-nos assim esta experiência:
Tratava-se, nem mais nem menos, de passar para português os versos do original, por maneira que coubessem na música francesa, e tivessem nas palavras a mesma acentuação; tal verso precisava que a primeira sílaba fosse aberta, a segunda surda, se eu principiasse por uma palavra em que a primeira sílaba fosse fechada, estava tudo perdido para o canto. As dificuldades para isto na nossa língua são consideráveis: cada vogal em português tem umas poucas de pronuncias: pára, para, Pará; de outras vezes, contendo-se as sílabas gramaticalmente, acha-se tudo estragado musicalmente, quando duas vogais se embebem uma na outra; ainda de outras, se a pausa, o acento predominante que há sempre numa das sílabas da palavra, e que é onde se demora a pronúncia, não for guardada na palavra correspondente, o canto ressentir-se-á. [1]
As dificuldades que Machado sentiu ao passar uma ópera da língua francesa para portuguesa são também aplicáveis quando a língua original é o alemão, com a agravante de, no presente caso, estarmos diante de uma ópera de Mozart. Se há compositor que, com apenas doze anos de idade, já sabia compor como ninguém para a voz humana, respeitado de forma sistemática a prosódia, os acentos e cor musical que queria dar a cada palavra, esse alguém é Mozart.
Existem muitas versões portuguesas da ópera Bastien und Bastienne, mas nesta versão, a tradutora, também cantora, procurou aproximar-se o mais possível do sentido das palavras no texto original em alemão, ao mesmo tempo que tentou encontrar uma prosódia confortável para o canto na língua portuguesa. Perfeição não pode existir, na adaptação musical de duas línguas tão dispares. Porém, como diria Walter Benjamin em The Task of the Translator (1921) , uma tradução pode ser encarada como uma forma de arte, no sentido de ser vista como uma espécie de escrita artística, tal como o poesia, e não como derivado secundário da arte literária. Mas Benjamin vai mais longe, quando afirma que a tradução, enquanto forma posterior ao texto original, pode ser um novo estágio da sua vida:
For a translation comes later than the original, and since the important works of world literature never find their chosen translators at the time of their origin, their translation marks their stag of continues life. [2]
Nesta produção da Companhia de Teatro do Eléctrico (com a encenação a cargo de Ricardo Neves-Neves), o Singspiel de Mozart entra de facto num novo estágio da sua existência, não só pela tradução, mas também pelas opções cénicas. Destaca-se o facto de termos actores a dobrar as figuras dos cantores e o personagem Colas ter sido dividido num casal de personagens (o Sr. e a Madame Colaço). A não perder.
21h Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP)
Rua Almerindo Leça (Alto da Ajuda), 1300 Lisboa
Contacto para reservas: Mafalda Simões | mafalda.simoes.tde@gmail.com
TRADUÇÃO Tânia Valente
ENCENAÇÃO Ricardo Neves-Neves
COM Tânia Valente (soprano, Sebastiana), Bruno Almeida (tenor, Sebastião), Diogo Oliveira (barítono, Sr. Colaço), Anna Leppännen (Sebastiana), Rafael Gomes (Sebastião) e Márcia Cardoso (Madame Colaço)
PIANO E DIRECCÇÃO MUSICAL Armando Vidal
MÚSICA Wolfgang Amadeus Mozart
Libreto original F. Wilhelm Weiskern (a partir da obra Le devin du village de J.-J. Rousseau)
PRODUÇÃO Teatro do Eléctrico
[1] Júlio César Machado, Apontamentos de um Folhetinista, 1878, p. 34
[2] Walter Benjamin, “The Task of the Translator”, The Translation Studies Reader, ed. Lawrence Venuti (London: Routledge, 2000), p.1