A Tania morreu ontem, 6 de Janeiro. A Tania foi uma das pessoas que contaram, e muito, para o nascimento de uma consciência colectiva do que é a arte de tocar piano. A ligação entre um trabalho manual, ou até mesmo físico, e uma realidade artística dada pela obra é a função de todos os músicos. Mas essa realidade nem sempre passava, há uns anos atrás, pois as palavras sensibilidade, talento, inspiração, toda uma “tralha” romântica, toldavam a realidade nua e crua da profissão artística. Sem querer falar de mim, sinto que isso é inevitável na homenagem que lhe quero prestar, e ela merece a 100%. A Tania foi a minha professora durante muitos anos. Apesar de não estar nessa altura no ensino oficial — são conhecidas as pegas dela e do seu marido Sequeira Costa contra o ensino ministrado no Conservatório Nacional —, foi com ela que concluí o meu exame do curso superior de piano nessa instituição.
Esse labor árduo e essa consciência da importância de uma técnica pianística foi ela quem me transmitiu. A preocupação constante com o som e a sua qualidade eram um dos seus maiores cavalos de batalha. Não é possível expressar o que quer que seja sem as ferramentas próprias. Mas o entusiasmo artístico, a apreciação da obra, assim como a apreciação de alguns intérpretes foi igualmente obra sua. José Manuel Beirão, numa fase de iniciação, e depois Tania Achot foram os responsáveis pela minha formação pianística e também por uma certa maneira de ver e apreciar a música.
Para além disso, a Tania era uma fulgurante pianista, os seus recitais a solo e a dois pianos com o Sequeira Costa na Gulbenkian estão para sempre gravados na minha memória. A sua graça inimitável quando “descobria” uma obra e me falava sobre ela, exemplificando-a ao piano no estúdio H do Edifício Castil, são outra grata memória que tenho dela. Lembro-me do seu entusiasmo a falar-me do segundo caderno d’O Cravo bem temperado de Bach e da sua demonstração por A mais B de que os prelúdios e fugas desse caderno ainda conseguiam superar os do caderno primeiro; lembro-me do seu entusiasmo a falar-me da Sinfonia n.º 6 de Mahler que não conhecia e tinha ouvido no dia anterior — sentou-se ao piano e de cor tocou três ou quatro acordes que eram indubitavelmente dessa obra. Lembro-me também do seu “mau feitio”, que podia ser difícil mas que era, para mim, pelo menos, digamos que “contornável” e estava ligado a um sentido de humor único.
Dou um exemplo: quando gravámos as Bodas de Stravinski, uma obra para quatro pianos, percussão, coro e solistas vocais, eu fazia par com ela. A uma certa altura, num dos ensaios na Aula Magna, dei por mim a discutir com ela qualquer coisa relacionada com a obra; a discussão era obviamente amigável mas não deixava de ser uma discussão. A Tania reparou entretanto que um homem, provavelmente da equipa técnica, nos observava atentamente, e diz-lhe para esclarecer: “olhe que este senhor não é meu namorado!”…
Passaram-se bastantes anos, depois da sua reforma, em que deixei de a ver, apesar de ir sabendo dela pela família e alguns amigos. Voltei a encontrá-la no lar onde também está a minha mãe. A princípio, talvez por causa da máscara, não me reconheceu, mas eu afastei-me e tirei-a. Disse logo o meu nome. No dia seguinte voltámos a ver-nos e aí, já mais segura de si, vira-se para mim depois de voltar a dizer o meu nome, com apelido e tudo, e pergunta-me (e isto era típico da Tania):
— O que é que estás a estudar agora?
— Tania, estou a trabalhar uma sonata de Beethoven e uma obra de Strauss.
(Olha para mim com um ar desconfiado e dispara:)
— Do Johann?
— Não, Tania, do Richard.
(Fica logo com ar mais sossegado, e diz-me: )
— Ah, está bem!
Era assim a Tania, única e inimitável. Uma personalidade entre mil. Uma memória para sempre!
Aqui fica a sua versão do estudo de execução transcendente Chasse-neige, de Liszt. Uma obra que ela adorava e que tantas vezes discutiu comigo.
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