Entrevista a Cristiano Holtz

 

Cristiano Holtz prepara actualmente um novo disco, desta vez dedicado às sonatas para cravo de Domenico Scarlatti. Tendo sempre convivido, naturalmente, com a música deste grande autor, de que modo chega agora, após incursões sobre muitos outros compositores, sempre da primeira metade do séc. XVIII, à música de Scarlatti?

Não foi uma coisa pensada. Eu não tenho intenção de gravar muitos compositores, ou de gravar por gravar – por, como cravista, ter de gravar determinados compositores –, não tenho: para mim é sempre uma questão intuitiva, dependendo do compositor que realmente me toca naquele momento. Scarlatti não era para ser já – eu sabia que um dia me iria dedicar decididamente a Scarlatti, mas não pensava que ia ser já; pensava que ia ser François Couperin antes.

Quando tocava Scarlatti, na Holanda, adorava a música dele, mas tinha uma forma diferente de a abordar: pensava ainda em ver o que os meus dedos conseguiam fazer, em melhorar e expandir a minha técnica, com aquela música maravilhosa… mas desde que vim viver para Portugal mudou muito a minha concepção sobre ele, graças aos meus amigos da música popular: principalmente quando cheguei, tive muito contacto com grandes guitarristas, com o Fado, mas também com alguns outros tipos de música folclórica portuguesa – eu sempre gostei muito da música étnica.

Então, comecei a ver Scarlatti com outros olhos: já não era simplesmente um grande virtuoso, mas também um homem que teve uma sensibilidade incrível para captar a música do povo, toda essa aura de um país – de Portugal, depois de Espanha, também da sua terra, Nápoles, de Veneza, por onde passou, de Roma, por onde também passou… e observando toda essa aura sonora étnica, misturada com o contraponto, que ele estudou com Gasparini, com tudo o que aprendeu com o Pai e com outros grande compositores, com o contacto que teve com Roseingrave, em Inglaterra, eu tive outro entendimento e, passado algum tempo, ouvi outras coisas de Scarlatti e pensava em quando começaria a estudar seriamente a sua música. Simultaneamente, vi a trilogia maravilhosa de Francis Ford Coppola, The Godfather, que me tocou tanto – e, para mim, ouvi Scarlatti do princípio ao fim.

Disse para comigo que aquilo era a música de Scarlatti: é mesmo isso, uma música humana, que fala das sombras, das luzes que nós temos, daquele homem carinhoso que manda matar outro homem que o está estorvando, dizendo “Há uma pedra no sapato”, mas depois muito amoroso com a filha e com o filho, capaz de ter um império inacreditável, pensando que, sejam quais forem, os meios justificam os fins, e que ao mesmo tempo é uma pessoa preocupada com a sua terra, em restaurar os prédios da Sicília, preocupado com as pessoas pobres – enfim, é uma ficção –, e ao mesmo tempo capaz de dar golpes em bancos, até inclusivamente no Vaticano. Sendo embora uma ficção, para mim contém muito da música de Scarlatti. Tomei, então, a decisão de que Scarlatti viria antes de Couperin: é intuitivo; é assim.

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ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 12 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).

Sobre o autor

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Estudou cravo, órgão e música antiga em Lisboa, exercendo intensa actividade, quer a solo, quer com agrupamentos de música antiga e orquestras. Licenciou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde estudou Filologia Clássica e em cujo Centro de Estudos Clássicos é investigador. Prepara actualmente a primeira tradução portuguesa das Cartas de Plínio. Integra a Direcção da revista 'Glosas'.