Música no feminino. Como? Porquê? O projeto Trio de Damas, lançado no passado dia 19 de Março pela Musicamera Produções, traz-nos algumas respostas, a par de outras tantas perguntas.
O serão teve lugar na Fábrica Braço de Prata, graças à colaboração de Nuno Nabais, que possibilitou a apresentação deste projeto ímpar na capital lisboeta. Curiosamente, a pequena — mas cheia — sala de nome Nietzsche parecia já introduzir o mote da tertúlia subsequente a este “concerto de degustação”, tal como lhe chamou Luís Pacheco Cunha, dadas as controversas visões do feminino na filosofia do pensador alemão.
Trio de Damas evoca três figuras da tradição pianística portuguesa, Helena Sá e Costa, Nella Maissa e Olga Prats, homenageadas por três pianistas da nova geração, Jill Lawson, Taíssa Poliakova Cunha e Inês Filipe, por esta ordem. Entre o público, estiveram presentes elementos da família da Nella Maissa e de Olga Prats, falecida recentemente, que foi também parte integrante do projeto, numa fase inicial. Além desta homenagem, Trio de Damas pretende também reforçar a divulgação da música autoral portuguesa, dada a intrincada relação entre as pianistas e os compositores a si coevos, tal como Lopes-Graça ou Croner de Vasconcelos, os quais lhes concederam, inclusivamente, um papel de “co-compositoras”. Ainda que não se conheçam datas em concreto, sabe-se que o projeto vai contar com três programas de recital de piano solo e outros três de câmara e (ou) concertos para piano e orquestra, disponíveis em https://musicamera.pt/triodedamas/, configurando-se um total de dois programas por pianista — homenageada e homenageadora — baseados numa série de obras a si dedicadas ou por si estreadas em Portugal. Os programas serão apresentados durante todo o ano pelos vários pontos do país, de Braga a Évora, dispondo também de formações locais.
Mas não é só de música do século XX que vive este projeto, já que Trio de Damas conta também com a colaboração de três compositoras contemporâneas, Sara Ross, Patrícia de Almeida e Ana Seara, as quais estão a desenvolver três peças inéditas para piano solo dedicadas a Helena Sá e Costa, Nella Maissa e Olga Prats, respetivamente. Por sua vez, a homenagem a Olga Prats contará também com um arranjo orquestral de Cuatro estacioniones porteñas do bandoneonista Astor Piazzolla, elaborado especialmente por dois argentinos, Alejandro Oliva, grande amigo de Olga, e Daniel Schvetz, e dois portugueses, Filipe Melo e Mário Laginha, pelo que consistirá numa estreia absoluta. Olga Prats era, com efeito, uma entusiasta da música de Piazzolla, tendo contribuído de forma incomensurável para o conhecimento e difusão deste compositor em Portugal.
Começado o pequeno recital, por volta das 22h, os problemas de isolamento da sala tornaram-se mais percetíveis, juntando-se depois barulhos próprios da idade heterogénea do público. Ainda assim, foi possível usufruir dos breves mas deliciosos momentos protagonizados pelas três damas da atualidade. Foi Inês Filipe e, de certa forma, Olga Prats, a primeira a apresentar-se, tocando Cinco prelúdios, Op. 1, de Armando José Fernandes, e Visions d’enfant de Constança Capdeville, a única compositora tocada nesta noite. A jovem pianista demonstrou não só o domínio do material, através da exploração de dinâmicas e ambientes, como uma versatilidade importantíssima para qualquer pianista que queira remeter para a imagem de Prats. O clímax da sua prestação foi a peça Maman, j’ai vi dans la lune, da compositora catalã, já que os seus conhecidos dotes viram-se incrementados por uma postura e linguagem corporal envolventes. Seguiu-se Taíssa Poliakova Cunha, que evocou Nella Maissa com Prelúdio e fuga, também de Armando José Fernandes, e Três danças do bailado Sonatina de Ernesto Halffter, o único compositor não português no programa apresentado. A prestação da pianista marcou-se pela preocupação com o detalhe e o diálogo constante, apresentando uma interpretação intensa e inebriante, na qual destaco a fuga. Por fim, foi a vez de Jill Lawson trazer Helena Sá e Costa, a par do incontornável Lopes-Graça. Entre os pontos altos da sua atuação, ressalto o brilhante encadeamento subjacente à seleção de noturnos e mornas apresentados. Por sua vez, a pianista demonstrou uma performance madura, evidenciando uma amálgama de qualidades interpretativas.
Aquando da enriquecedora tertúlia final, pôde debater-se sobre o défice de intérpretes e compositoras nas escolhas programáticas, questionando-se se existem ou não elementos que possam definir feminilidade em música. As compositoras presentes, Ana Seara e Sara Ross, ressaltaram que, ainda que a ausência dos pontos de vista femininos seja notória, seria redutor colocar esta questão como condicionante imperativa, independentemente do pender da balança, não se problematizando, portanto, a hegemonia de compositores masculinos no programa recém-apresentado. Entre várias partilhas e comentários, salientou-se também a importância dos esforços musicológicos da atualidade, os quais visam apresentar uma “música nas antípodas do segregacionismo”, palavras de Luís Pacheco Cunha.
Trio de Damas é, sem dúvida, um projeto inovador que promete dar que falar. Uma salva de palmas a todos os colaboradores, músicos e não músicos, e uma outra ovação às três damas da tradição pianística nacional, cujo legado intemporal promete fixar-se no imaginário cultural português, transcendendo as gerações que tiveram o prazer de privar com elas.