A Glosas esteve presente na segunda de duas récitas da mais recente produção de Tristão e Isolda, integrada na temporada lírica do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), levada à cena no grande auditório do Centro Cultural de Belém (CCB). Passados trinta e dois anos desde a última apresentação em versão encenada do drama musical wagneriano no TNSC, a principal interrogação que a leitura do encenador e cenógrafo britânico Charles Edwards me suscitou foi o que nela houve de diferente daquilo a que já tínhamos assistido.
Conquanto seja difícil encontrar intérpretes suficientemente resistentes para enfrentarem os desafios técnicos de uma ópera cuja duração ronda as quatro horas, e que tanto a justa remuneração dos poucos disponíveis quanto os custos de produção sejam incompatíveis com a presença frequente na programação das nossas instituições músico-teatrais, quer o circuito comercial das gravações audiovisuais, quer os recursos disponíveis em plataformas online fornecem-nos várias alternativas de contacto com a obra. Se neste raciocínio forem também incluídos os sectores do público com capacidade de percorrer as redes internacionais de teatros, o acesso às mais variadas interpretações da obra é exponencialmente aumentado. Por conseguinte, creio poder afirmar que Tristão e Isolda é uma obra relativamente bem conhecida pelo público em Portugal.
A leitura de Charles Edwards aposta na dissolução da utopia da ilusão através da desconstrução progressiva da cenografia. Se durante o primeiro acto a acção é colocada a bordo de um navio, a consumação do amor entre as duas personagens principais no dueto do segundo acto coincide com o momento em que o artifício dramatúrgico é assumido através da deslocação do cenário, revelando o bastidor do palco do CCB. O terceiro acto segue a mesma fórmula, cujo corolário será o Liebestod de Isolda, cantado junto a um Tristão ressuscitado, imóveis, sentados num comum sofá, e iluminados por um foco de luz. A transfiguração operada não é, pois, de índole metafísica. Ultrapassa a “quarta parede”, assumindo a condição de realidade, instando o público à reflexão crítica do social.
Desse ponto de vista, esta produção afigura-se problemática, sobretudo pela discrepância entre uma dramaturgia que aspira ao processo épico e as prestações dos artistas em palco. Subjacentes aos seus desempenhos estiveram princípios naturalistas, que, no entanto, foram gorados por lugares-comuns, clichés operáticos e inconsistências. Veja-se o final do primeiro acto, durante o qual Catherine Carby (Brangäne) tenta impedir que Elisabete Matos (Isolde) se agarre a Erin Caves (Tristan), quando esta não o estava a tentar, ou momentos de comoção em que as personagens se prosternam a chorar, histrionias de certa forma inconsequentes no quadro geral da encenação. No mesmo sentido, também o dueto do segundo acto resultou frustrante. Por interessante que seja a citação do Tristão músico no original de Gottfried von Strassburg em que o libreto se baseia, transformando o encontro carnal dos amantes numa eufemística invocação de dimensões orgiásticas da música, isso concorre para uma idealização romântica da relação entre ambos. Se os figurinos, cenários e adereços não tivessem sido actualizados à contemporaneidade, provavelmente os desempenhos continuariam a fazer sentido numa produção oitocentista.
Impõe-se, por conseguinte, a questão: faz sentido que, no dias de hoje, uma dramaturgia épica preconize a ideologia subjacente a uma tal apropriação do amor medieval? O resultado parece-me ser o paradoxo entre a reificação e reprodução de relações de poder entre personagens e a tendência contemporânea de incompatibilização com a secundarização de que, por exemplo, Isolda é alvo enquanto mulher: objecto prometido, agrilhoada pela obrigação de um casamento que não deseja. Paradoxo gerado também por uma actualidade em que a sensualidade e a sexualidade tendem a ser reconhecidas como partes inextricáveis dos quotidianos. Também o paradoxo da excepcionalidade do poder das elites sobre as relações humanas, naturalizada nesta produção – e mais uma vez! – pela magnanimidade da figura do Rei Marke. Em suma, sou levado considerar que o objectivo subjacente à questão com que iniciei esta reflexão tenha sido boicotado pela sedução romântica a que continuamos, nos dias de hoje, a sucumbir.
Sendo suposto que na Ópera a música esteja integrada no projecto dramatúrgico, não me parece que aqui isso tenha sido plenamente conseguido. O desempenho da orquestra foi globalmente correcto, tendo o maestro Graeme Jenkins optado por uma abordagem quase camerística, compatível, aliás, com uma leitura intimista de uma obra cuja espírito é, em larga medida, precisamente esse. Embora muito eficaz no dueto do segundo acto, em grande parte do resto do espectáculo faltou textura, matiz, contraste e o detalhe em que a partitura de Wagner é rica. A orquestra pareceu relegada à condição de acompanhamento dos cantores, fazendo-lhes cedências para que pudessem ser escutados. Bem sei que a voz humana é limitada face a grandes massas orquestrais e esse é um risco presente em Tristão e Isolda. Questionável é que tais concessões se tornem óbvias, porque inorgânicas. Como referi, os cantores não são alheios a isto. As regiões mais graves da voz de Elisabete Matos foram praticamente inaudíveis e o topo revelou algum descontrolo. Problema semelhante acometeu Erin Caves, que se viu obrigado a gritar em saltos para notas mais agudas em fortíssimo, independentemente da consistência que demonstrou ao longo de todo o espectáculo, em especial durante o terceiro acto. A dificuldade em conjugar todas as componentes do espectáculo num todo unificado acabou por encontrar um símbolo no clímax do Liebestod, através de um exagerado fortíssimo pela orquestra, incompreensível senão como reacção à contenção a que se submeteu durante as cerca de quatro horas de espectáculo. Termino, portanto, como comecei, com uma pergunta: é de um espectáculo de tipo músico-teatral que estamos a falar quando defendemos a exigência no nosso teatro nacional operático?
Richard Wagner (1813-1883)
Libreto
Richard Wagner
Centro Cultural de Belém | Grande Auditório
9 de Março, 18h00 / 12 de Março, 15h00
Tristan
Erin Caves
Isolde
Elisabete Matos
Rei Marke
Kristinn Sigmundsson
Kurwenal
Luís Rodrigues
Melot
Marco Alves dos Santos
Brangäne
Catherine Carby
Um Pastor
João Terleira
Um Timoneiro
João Oliveira
Encenação e Cenografia
Charles Edwards
Figurinos
Susan Willmington
Desenho de Luz
Giuseppe Di Iorio
Direcção Musical
Graeme Jenkins
CORO DO TEATRO NACIONAL DE SÃO CARLOS
(Maestro titular: Giovanni Andreoli)
ORQUESTRA SINFÓNICA PORTUGUESA
(Maestrina titular: Joana Carneiro)
Nova Produção do TNSC
(A última apresentação de Tristan und Isolde em São Carlos ocorrera em Janeiro de 1985)
M/6
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