Decorreu no serão de ontem o ensaio-geral de O cavaleiro das mãos irresistíveis, a comédia lírica em um ato e seis cenas, com música e libreto do compositor português Ruy Coelho (1883 – 1986), a partir do conto homónimo de Eugénio de Castro (1864 – 1944). Trata-se de uma nova produção desta obra, que teve a sua estreia absoluta em 1927, no Teatro Nacional de São Carlos, sob a direção do próprio autor. Do elenco – totalmente nacional – fazem parte a soprano Joana Seara (D. Beatriz), a meio-soprano Cátia Moreso (D. Mór), o tenor Marco Alves dos Santos (D. Sancho) e o barítono Job Tomé (D. Guterre). Trata-se de uma iniciativa do MPMP – Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, com direção musical do maestro Jan Wierzba, à frente do Ensemble MPMP. A encenação é de António Durães, cenografia de Ana Gormicho, desenho de luz de Rui Simão e cinematografia de Mário Gajo de Carvalho. Esta iniciativa conta com o apoio da Direcção-Geral das Artes / Governo de Portugal e dos Teatros Municipais Joaquim Benite, em Almada, e Campo Alegre, no Porto, onde decorrerão, respetivamente, a estreia, hoje às 21h30, e as duas récitas suplementares, a 18 de Abril, às 21h30 e 19 de Abril, às 17h00.
Este espetáculo não é apenas composto por música de Ruy Coelho. Mantendo o seu objetivo de divulgar o património musical de países de língua portuguesa, o MPMP não perdeu a oportunidade de contribuir para o estímulo à produção contemporânea: da encomenda a Daniel Moreira (1983) nasceu Cai uma rosa…, episódio lírico em seis cenas, com libreto por Edward Ayres d’Abreu que, inspirado no mesmo poema, funcionará como interlúdio a O cavaleiro das mãos irresistíveis. Em entrevista à RTP – Antena 2, o compositor explicou que um dos seus propósitos foi dar a conhecer partes do poema de Eugénio de Castro que haviam sido eliminadas no libreto de Ruy Coelho. Com esta estratégia, o público verá resolvidos alguns dos problemas gerados por esses cortes, ao mesmo tempo que se assegura a unidade dramatúrgica de todo o espetáculo. Recorde-se, quanto a isto, que, devido à sua curta duração – cerca de quarenta minutos – as reposições desta ópera durante o século XX incluíam habitualmente a apresentação conjunta de outras obras.
O enredo conta a história do D. Sancho, um cavaleiro espanhol que, ferido por ter caído da sua montada, é acolhido por D. Guterre – fidalgo conimbricense –, sua mulher D. Mór e D. Beatriz – a filha do casal, prestes a iniciar o noviciado. O amor entre Sancho e Beatriz acaba por despontar. Mas tudo é complicado por uma carta recebida por D. Guterre, alertando-o para o poder corrompível das mãos de D. Sancho que, por isso, jamais deveriam ser desenfaixadas dos parches que haviam sido aplicados sobre as feridas causadas pelo acidente. O desfecho da trama guardo-o para que o conheçam ao vivo, em Almada ou no Porto.
Faço, agora, uma declaração de interesses: escrevo este artigo na Glosas, um dos ramos de intervenção, precisamente, do MPMP que – repito – é a plataforma organizadora da produção que me proponho discutir. Depois do alerta, gostaria de partilhar convosco algumas das minhas impressões acerca daquilo a que assisti. São impressões superficiais, resultado de uma primeira e única audição de duas obras que eu não conhecia, nem tão-pouco através de partituras. Leve-se isso em consideração quanto ao peso das minhas palavras!
Considero que é sempre difícil tentar descrever a música e, mais ainda, num primeiro contacto. Correndo o risco de ser redutor e de cair na armadilha de contribuir para a cristalização e reprodução de certo tipo de modelos discursivos, algumas passagens da composição de Ruy Coelho encontram paralelismos na linguagem de compositores de ópera italiana ainda ativos nas primeiras décadas do século XX, como Puccini (1858 – 1924), ou na delicadeza de certas passagens de influência clássica nalgumas óperas de Richard Strauss (1864 – 1949). Coelho não se fica, contudo, por aqui: polariza a multiplicidade da sua partitura acrescentando-lhe traços que, mesmo ténues, a enriquecem com alguns dos recursos desenvolvidos pelas escolas expressionistas da Europa Central. Não nos esqueçamos também de que período histórico estamos a falar: esta ópera estreia em 1927, no ano seguinte ao do “Golpe de 28 de Maio”, numa época em que as artes estavam ainda largamente concentradas na busca e construção de uma expressão nacional. A isto não terá sido alheia a inclusão de elementos, quer rítmicos, quer melódicos, habitualmente associados às músicas tradicionais ibéricas. Oiça-se, por isso, o motivo de D. Sancho, que parece baseado em melismas e ornamentos que nos remetem quase automaticamente para a música espanhola – Ruy Coelho terá pretendido utilizar um tópico musical identificador da origem da personagem.
Cai uma rosa… surge plenamente integrado na continuidade musico-dramatúrgica de O cavaleiro das mãos irresistíveis. Como é óbvio, esta afirmação é uma visão muito pessoal, todavia a completa dissolução do tonalismo e da melodia dita tradicional por via do uso, por um lado, de intervalos extremos, por outro, de cordas de recitação, a par da exploração de contrastes tímbricos e de intensidade sonora, tanto pela orquestra, como pelos cantores, pareceram-me estratégias adequadas à descrição do carácter fragmentário, simbólico, por vezes incoerente e, sem dúvida, pulsional do espaço onírico. A coerência musical entre esta obra e a de Ruy Coelho é mantida por alusões sub-reptícias ao material da segunda que o compositor nos desafia a encontrar. O episódio lírico de Daniel Moreira transporta a ação para o sonho de Beatriz, atormentada pelo amor por D. Sancho, incompatível com um futuro eclesiástico e com o respeito pelo poder parental. A dialética entre o fosso e o palco é instrumental no conflito entre a voz das personagens subjugadas à sociedade e a sua interioridade acometida por fortes desejos contrários a esse poder.
O trabalho em curso demonstrado no ensaio-geral de ontem foi um bom prenúncio para a estreia desta noite e das duas récitas previstas. Destaque para Marco Alves dos Santos, que foi capaz de fazer face aos desafios de ambas as partituras com segurança. Atacou as notas agudas com clareza e demonstrou deter um registo médio de grande beleza. Cátia Moreso, que na D. Mór de Ruy Coelho é um pouco secundarizada, encontrou espaço na versão de Daniel Moreira para explorar diferentes registos e densificar a sua construção da personagem. Joana Seara e Job Tomé, desempenhando com eficiência as secções mais líricas e aquelas mais extremadas, foram, neste ensaio, dos quatro intérpretes, os mais prejudicados pelos acertos ainda em aperfeiçoamento quanto ao equilíbrio sonoro entre a orquestra e os cantores, nomeadamente em momentos de fortissimo. Ainda em relação à orquestra, destaque para o solo de violino, no intermezzo da cena 4 de O cavaleiro das mãos irresistíveis, e a serenata de D. Sancho, na cena 5, com acompanhamento pela harpa.
Não é demais assinalar que esta produção se concretiza com escassos meios financeiros, não obstante ter beneficiado do apoio pontual pela Direção-Geral das Artes. Nas palavras de Edward Ayres d’Abreu – que, para além de libretista de Cai uma rosa…, é o presidente da direção do MPMP – “o ensemble MPMP é uma estrutura sem estrutura e sem pessoas a trabalhar a tempo inteiro”. A apresentação destas duas óperas surge na sequência de um percurso iniciado em 2012, e que conta já com uma digressão ao Brasil, em março do ano passado. A componente dramatúrgica do espetáculo que hoje estreia será uma das dimensões mais visíveis dos constrangimentos que acometem organizações culturais desta dimensão: a sobriedade da cenografia e dos figurinos e o investimento na construção de atmosferas emocionais e psicológicas por meio de projeção de imagens e desenho de luzes terão sido a opção possível, de que a simplicidade eficaz da encenação de António Durães me pareceu corolário. O posicionamento de cada personagem em diferentes planos do palco e o uso de cores e intensidades luminosas contrastantes contribuíram para uma noção mais clara dos processos mentais que nelas iam decorrendo.
Mas permitam-me cumprimentar este grupo de profissionais por escolherem apresentar uma ópera. Permitam-me fazê-lo por o concretizarem nestes dois teatros, destas duas cidades. Não quero ser demagógico ao ignorar que isto se terá devido a questões práticas de disponibilidade e abertura institucional. Mas o resultado final é que uma população com as características como a de Almada terá acesso a um espetáculo de ópera, com qualidade, a um preço mais acessível – 10 euros – do que os praticados no TNSC – Teatro Nacional de São Carlos[1]. Este parece-me ser um passo importante na deselitização da ópera em Portugal a que instituições com mais poder simbólico têm resistido. A centralização deste género musical no TNSC tem sido prejudicial à sua democratização. Perenemente sujeito a suborçamentação por governos sucessivos, instabilidade nas equipas de gestão administrativa e artística, bem como à intervenção de outros grupos de influência – de que a ação da comunicação social parece muitas vezes ser reflexo – a sua programação tem-se vindo a fixar num repertório canonizado, por oposição à exploração não só de obras já esquecidas – a função de “[…] preservação da herança cultural, recuperando e divulgando o património músico-teatral de origem nacional ou conservado em Portugal” [2] – como daquelas que são resultado do trabalho de artistas contemporâneos – a função de “encomenda a autores portugueses de novas obras” [3]. Os preços dos ingressos são impeditivos da “formação de novos públicos” a que o seu organismo gestor se propõe, limitando-se, para tal, a enunciar a intenção de realizar “[…] produções itinerantes e de um programa educativo, sobretudo dirigido ao público infanto-juvenil” [4]. Acrescente-se – permitam-me a expressão – o eufemismo que, no mínimo, tem sido o Festival ao Largo…
Esta produção da MPMP é também um contraste face ao panorama operático nacional ao dar oportunidade a artistas nacionais de se apresentarem em papéis principais. Não sendo prática habitual, dá mostras do proselitismo reinante nas instituições dominantes. Os curricula de muitos dos nossos profissionais das artes e a qualidade evidente do seu trabalho demonstram quão injusto é o tratamento que lhes tem vindo a ser dado e a absoluta necessidade de serem proporcionadas as oportunidades de trabalho e mediatização de que têm direito enquanto representantes do seu próprio país e agentes vinculados ao desenvolvimento cívico das populações[5].
Convido-vos, assim, a assistir a O cavaleiro das mãos irresistíveis e a Cai uma rosa…, fazendo votos para outros grupos sigam o exemplo do MPMP no sentido da construção de uma cena musico-teatral mais plural e dinâmica.
[1] Poderá consultar as quantias praticados na temporada lírica do TNSC em http://tnsc.pt/bilheteira/. Sendo certo que esta instituição também tem bilhetes a custo de 10 euros, a quantidade de lugar a esse preço é diminuta.
[2] Artigo 2.º, alínea f) dos Estatutos do Organismo de Produção Artística, E.P.E. (OPART, E.P.E.) – gestor do Teatro Nacional de São Carlos.
[3] Artigo 2.º, alínea h) dos estatutos da OPART, E.P.E.
[4] Artigo 2.º, alínea e) dos estatutos da OPART, E.P.E.
[5] Veja-se o caso de Elisabete Matos, que só após se notabilizar em instituições estrangeiras de grande poder, viu reconhecido o seu valor artístico, sendo convidada, agora com regularidade, para atuar no único teatro de ópera em Portugal. Contudo, alerto para o facto de haver mais vida para além desta cantora.