A quinta edição do Encontro Internacional de Piano Contemporâneo realizou-se entre os dias 12 e 14 de novembro, em formato online, e contou com a participação de instrumentistas, compositores e investigadores que tiveram oportunidade de participar de diversas conferências, comunicações de pesquisa, recitais-palestra e concertos. Na edição deste ano, foi homenageado o compositor e pianista Almeida Prado, no décimo aniversário do seu falecimento. A primeira edição ocorreu em 2016, tendo na altura sido publicada uma breve notícia a esse propósito.
Desta vez, o evento foi promovido pelo Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil), a Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo e o Centro de Investigação em Sociologia e Estética Musical (Portugal).
Para conhecermos melhor esta iniciativa convidámos, para uma pequena entrevista, a pianista e investigadora Ana Cláudia de Assis. Nesta partilha, Ana Cláudia reflete acerca do desafio que foi preparar o encontro num formato totalmente online, do seu percurso enquanto investigadora e intérprete, das dificuldades de leitura e interpretação da música contemporânea, da relação musical Portugal-Brasil e das suas expectativas quanto ao futuro da música.
Na semana passada realizou-se, em formato online, o V Encontro Internacional de Piano Contemporâneo. Como se deu a iniciativa deste encontro? Como escolheram os participantes e os temas das apresentações?
O Encontro Internacional de Piano é um evento itinerante que surgiu em 2016 e a ideia é que cada edição aconteça num lugar diferente. A cada ano, o encontro é organizado por uma instituição. Como tal, a temática e o seu carácter vai depender muito do organizador geral daquela edição. Eu estava muito na dúvida sobre se íamos realizar o encontro devido a esta questão da pandemia e às dificuldades de como seria fazer um evento totalmente online… O Fernando Corvisier[i], o meu colega da Universidade de São Paulo, perguntou-me onde seria e eu sugeri que fosse na USP, com a sua organização. Tanto eu como ele queríamos fazer uma homenagem ao Almeida Prado, porque tanto nós como os nossos colegas temos uma história com o Almeida…
A Ana Cláudia fez parte da Comissão Organizadora e, portanto, teve um papel crucial no planeamento deste evento. Concentrando-nos um pouco mais em si, de onde veio o seu interesse pela música luso-brasileira?
Desde o meu bacharelato. Eu tive uma professora de piano que estava sempre muito interessada na música que se estava fazendo na altura, mas principalmente na música brasileira. A minha entrada na música contemporânea internacional começou pela via da música contemporânea brasileira. Foi um bocado através de compositores como Almeida Prado, Guerra-Peixe[ii] e Lopes-Graça[iii]. (…) A partir de então, comecei a buscar repertório que tratasse questões da sonoridade, técnicas estendidas… queria ampliar a minha performance. Eu tive de desconstruir esse corpo formatado pela tradição para poder conseguir, realmente, realizar essas novas linguagens, essas novas sonoridades da música contemporânea.
Fez alguma colaboração, nos últimos tempos, com algum compositor?
Sim, com alguns compositores temos quase colaboração contínua, mas agora nesse período da pandemia tenho aproveitado para trabalhar mais o meu repertório. (…), mas estou aguardando as respostas, inclusive da DGArtes e de outras instituições, para dois projetos encomendados a dois compositores portugueses: um deles está relacionado com obras para iniciantes, para trabalharmos a questão do piano na música de câmara; e o outro para profissionais.
Para além da formação em piano, o seu percurso profissional conta, também, com trabalhos de natureza teórica. Acredita que esta ampla base a tem ajudado na interpretação e compreensão da música contemporânea? Esta questão recorda-me o manual-tratado Technique de mon langage musical de Olivier Messiaen…
Eu acho que sim. Todavia, quando falamos de manuais o que a gente está vendo, já há uma década ou mais, é que cada compositor acaba criando o seu próprio léxico, a sua própria gramática; então existem algumas técnicas que já estão padronizadas, inclusive a própria grafia como o glissando, o cluster, entre outros, mas os compositores estão sempre inventando novas técnicas e novas formas de explorar o timbre e o som do instrumento a solo e em conjunto, como na música de câmara e orquestral. (…) É muito diferente quando lemos um repertório de herança, onde já está tudo convencionado.
Existe, efetivamente, uma escassez de gravações de obras mais recentes que, quando aliada a lacunas na notação, dificultam a fidelidade com a obra. Enquanto intérprete, quais são as principais dificuldades que encontra na leitura e performance?
Encontro dificuldades de várias ordens, desde resolver os problemas técnicos, como por exemplo… no ano passado fizemos uma obra do João Quinteiro[iv] que tinha uma preparação fixa e uma preparação móvel. Algo mais complexo. E, então, saber o que é que realmente quer que soe, o tempo… porque existe toda uma coreografia… Às vezes, o andamento que é exigido não dá tempo e temos de flexibilizar. Claro que estamos sempre em contacto com o compositor e as decisões vão sendo tomadas em conjunto, mas é um desafio.
Uma das questões levantadas por uma das conferencistas, Marilyn Nonken[v], aponta para os limites do piano na música espectral e, por conseguinte, no microtonalismo. Já sentiu estas limitações?
Obviamente que a gente pode destemperar mas, como é tão complexa essa afinação do piano, precisamos sempre de ter um técnico. Também é muito raro um compositor pedir para um intérprete fazer isso nas cordas. Mas o que eu tenho visto que tem resolvido essa questão é a eletrónica. Muitas obras para piano e eletrónica fazem essa simulação. Eu acho que esses recursos tecnológicos vêm realmente trazer uma alternativa para esses limites, digamos assim, em termos de afinação do piano.
Há pouco falou sobre a questão da escuta. Como é que um aluno iniciante sabe o que esperar de uma peça deste estilo? Como é que ele sabe ao que a peça tem de soar?
Nós temos visto um movimento crescente de peças para iniciantes de compositores justamente interessados e preocupados com essa questão do ensino. Há uma pianista inglesa, a Thalia[vi], que criou uma série chamada Spectrum, uma coletânea para todos os instrumentos. Convidou vários compositores de vários países para escreverem peças para iniciantes com e sem eletrónica. Agora, depende do professor… Temos um paradoxo porque, infelizmente, se os professores dos conservatórios ou universidades não estão sensíveis a estas questões, o aluno, a menos que tenha a sorte de conhecer outro professor ou então de assistir a concertos e ficar interessado, vai ficar sempre repetindo o repertório do professor, que repetiu do professor… Temos de começar esse trabalho de sensibilização de professores…
Cá em Portugal já pudemos observar algumas iniciativas nos professores mais jovens, como a de Gustavo Afonso[vii], que nos apresentou a sua coletânea de partituras para piano, resultado de uma parceria com vários compositores.
Eu acho que os intérpretes também têm uma responsabilidade. Podem criar um concerto que seja mais acolhedor para o público. O intérprete pode conversar um pouco com o público, contextualizar aquela obra, falar sobre o compositor, que também é um ser humano como nós. No repertório, temos de ter sensibilidade de mesclar. No século XXI há muita gente fazendo também consonâncias. Por que não mesclar? Assim também se mostrando que a música contemporânea é muito diversa e há música para todos os gostos.
Durante o Encontro, foi também discutida a lacuna de obras que trabalhem a perspetiva do intérprete. Cito aqui a expressão “fala-se muito em criar obras, ao invés de criar performances”. Neste sentido, que trabalhos tem vindo a desenvolver que ajudem a elucidar o lado do instrumentista?
Bom, no meu caso eu venho fazendo muito trabalho multimédia, com imagens, com poemas, com atrizes. Já convidei alguém para fazer um vídeo para determinada obra. Fiz um trabalho onde o vídeo era projetado no piano, no corpo do instrumento. Justamente, talvez, até mesmo para poder atrair mais o público, porque nós vivemos numa sociedade imagética. A imagem é um apelo muito forte. Já trabalhei muito nisso, mas agora quero parar. Quero investir mais na improvisação (…). Eu acho que este é um momento em que estamos realmente a falar mais disso, a dar voz ao performer, estou achando que está todo mundo um pouco buscando isso…
A Ana Cláudia tem contactado diretamente com as práticas culturais em Portugal e no Brasil. Como caracterizaria a relação musical entre estes dois países? Foi fundado pelo CESEM, em 2008, o Núcleo Caravelas – Núcleo de Estudos da História da Música Luso-Brasileira, que tem vindo a trabalhar e articular os pontos de ligação entre estes dois países.
Digamos que, até à primeira metade do século XX, o Brasil acaba se voltando de costas para Portugal. Vemos um distanciamento, talvez até uma tentativa de apagar aquele passado colonizador, escravocrata. Desse modo, acabou criando-se uma tradição: os compositores e os intérpretes vão para a Europa, mas não vão para Portugal.
Mas aí o que vejo é que o Lopes-Graça, na década de 50, correspondeu-se com muitos intérpretes, escritores e compositores brasileiros, e por isso o Brasil sabia como estava Portugal, e Portugal também sabia como estava o Brasil. Ele publicava tudo na Gazeta Musical. Depois vemos no Jorge Peixinho[viii] um outro mediador cultural, mais na década de 60 até 90. Depois temos o João Pedro Oliveira[ix] que vem para o Brasil e faz esse intercâmbio já na última época.
Na relação mais do pensamento teórico e da musicologia, a gente vai vendo pesquisadores mais recentes como o grupo Caravelas que estão, agora, fomentando uma história antiga. Este intercâmbio não está bom, ainda está começando e ainda falta fazer muita música, muita história; há muitos documentos para ser trabalhados, até muitos ainda em acervo.
Se um pianista quiser tocar obras de Almeida Prado, por exemplo, onde as pode encontrar? Pergunto isto na medida em que muitas destas obras podem estar guardadas em acervos pessoais e não terem sido editadas, tanto em Portugal como no Brasil…
Em Portugal, tudo o que eu precisei eu encontrei no MIC, um site excelente com tudo muito bem organizado. No caso da Clotilde Rosa também há lá muita coisa, mas também conseguimos aceder ao acervo de família através dos seus filhos. No caso do Almeida Prado, está tudo na Academia Brasileira de Música. Eles estão com quase tudo digitalizado e aí você pode solicitar pelo email e paga a cópia e eles mandam digitalizado. Também tem o Centro de Documentação de Música de Campinas…
Ao longo desta entrevista, temos vindo a apontar várias técnicas não convencionais que têm sido exploradas nos últimos anos. Tendo em conta o panorama atual, com que perspetiva olha para o futuro da música contemporânea? O que ainda falta explorar?
Não sei! Às vezes eu ainda me pergunto “o que eu poderia fazer de diferente?”. Não sei ainda. A gente vai buscando.
O meu projeto novo não está relacionado com o instrumento. O meu novo canal do Youtube “O piano de Ana” vai ter apresentações minhas a cada semana, com obras do meu repertório, em que eu toco e falo sobre ele e sobre a minha interpretação: “porque é que eu faço assim? Para onde me remete?”… O intérprete não pode esperar que o público bata à porta e peça para tocar uma música contemporânea.
Relativamente ao próximo Encontro Internacional de Piano Contemporâneo, já tem algo em mente? Alguma data?
Ocorre sempre entre outubro e dezembro, depende da instituição de acolhimento. Eu gostaria muito que fosse num país da América Central, para sair um pouco da Europa. O Brasil, por causa da língua, fica muito isolado. Gostava de o fazer no México, Costa Rica ou Argentina. Quem quiser ser organizador, pode me contactar. Como é itinerante, pode ser em qualquer sítio.
A programação do V Encontro Internacional de Piano Contemporâneo contou, para além dos já mencionados, com a participação de Peter Hill, Ana Telles, Cristina Gerling e Alda de Oliveira, na discussão da obra de Messiaen e da música para piano de Clotilde Rosa e Jamary de Oliveira. Nas comunicações de pesquisa foram apresentados novos projetos de investigação em ensino de piano na música contemporânea pelos pedagogos e intérpretes Iully Benassi, Fátima Corvisier, Carla Reis, Sabrina Schulz, Joana Holanda, Irene Zavala e Gisele Pires Mota. A pianista Carla Reis fez o lançamento do seu livro O piano na universidade brasileira: trajetórias em contraponto que, segundo a autora, que lança um novo olhar sobre a formação superior em música; e Abnader Domingues lançou o seu novo disco Piano contemporâneo brasileiro em Ituiutaba. Houve ainda espaço para interpretações de obras de Flo Menezes, Nimrod Borestein, Amaral Vieira, James Correa, João Pedro Oliveira e Lidia Bazarian, entre muitos outros.
O Encontro Internacional de Piano Contemporâneo revela-se, desta forma, um evento multifacetado e aberto a todos que tenham interesse no piano e na música contemporânea.
[i] Fernando Corvisier. Pianista e professor de piano na Universidade de São Paulo, Brasil. Como investigador, trabalha em projetos relacionados com a obra para piano do compositor Almeida Prado. Desenvolveu, de igual modo, interesse pelo estudo do repertório de música brasileira para duo de piano.
[ii] César Guerra-Peixe (1914-1993). Compositor, violinista e professor. A sua carreira conta com duas grandes fases: dodecafónica (até 1949) e nacionalista (a partir de 1948). Foi capa da revista Glosas n.º 11.
[iii] Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Compositor, maestro e musicólogo. Da sua vasta obra para piano importa mencionar os concertos para piano e orquestra e as sonatas.
[iv] João Quinteiro. Compositor e professor. Estudou composição com João Pedro Oliveira, Emmanuel Nunes e Flo Menezes, entre outros.
[v] Marilyn Nonken. Pianista e musicóloga. As suas áreas de interesse focam-se na música espectral para piano e na obra de Olivier Messiaen.
[vi] Thalia Myers. Pianista e professora. Autora da coletânea Spectrum, que conta com cinco edições de peças contemporâneas para piano solo e uma para duo. Desenvolveu, na mesma vertente, repertório para grupos de música de câmara, entre eles trio de piano, quarteto de arcos e quinteto de sopros.
[vii] Gustavo Afonso. Pianista. O seu projeto final de mestrado visa a criação de um álbum que contou com a participação de seis compositores portugueses, cujo objetivo é, nas palavras do próprio, “aferir o potencial da música recente no desenvolvimento da técnica pianística e na aquisição de competências musicais”.
[viii] Jorge Peixinho (1940-1995). Compositor, pianista e maestro. Colaborou com os compositores Karlheinz Stockhausen e Pierre Boulez. Fundou o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa.
[ix] João Pedro Oliveira. Compositor e professor. Nos seus trabalhos mais recentes, tem explorado as possibilidades de interação entre sons instrumentais e sons eletroacústicos.