Recentemente, num bem-intencionado exercício de reflexão e autoconhecimento, os órgãos sociais do MPMP procuravam encontrar a palavra que melhor descrevesse este Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa. Uma palavra apenas, nada mais. O consenso pareceu recair sobre o termo movimento.

O MPMP é então um movimento, consagrado tanto pela sigla que lhe dá nome como pelo espírito de quem responde por ele.

Lembro-me de, face a esse resultado, consultar o dicionário a propósito da palavra e constatar de que forma este termo é invulgarmente flexível.

Acto ou efeito de mover ou de mover-se. Sem surpresas. Mas também deslocação, mudança, evolução, agitação, animação, revolta e outras mais. Parece que a própria expressão movimento se transfigura entre coisas bem diferentes, e se o exercício era escolher uma palavra que, isolada, permitisse concisão, logo se optou por uma que se expande como uma pequena constelação de possibilidades.

E não será exactamente essa a condição deste Movimento, que tanto se desloca quanto evolui, expande, retrai, agita e anima? Não será, de facto, o movimento o seu estado natural de existência, logo, sendo forçado a viver o movimento animado, permanente, errante, errático, inesperado? E se assim é, pode um movimento ser contínuo, tal como o moto tenta ser perpetuo?

Para a mente humana é incompreensível a continuidade absoluta do movimento.

É com estas palavras que Tolstói abre a terceira parte do III livro de Guerra e Paz, que, mais que um romance, é um tratado construído sobre uma visão orgânica e fluida da história e de todas as pessoas e acontecimentos que deram forma aos seus infinitos movimentos. E o que é isso de um movimento contínuo ser um conceito incompreensível, quando toda a vida é em si mesma um movimento?

Muito simplesmente, todos nós vimos e vamos para algum lado, mas não resistimos à aspiração de atingir um estado de estagnação, por estranho que isso possa parecer. Para a mente humana, o descanso dos nossos sofrimentos vê-se consagrado no momento em que atingimos certo patamar a partir do qual não precisaremos mais de nos cansar com o esforço do movimento terreno, podendo finalmente gozar dos benefícios desse estado novo e superior. É claro que é uma ilusão, e já diz o ditado que parar é morrer. O movimento é estar vivo, e manifestação da própria vida.

O mesmo se aplica a este Movimento. Começado há dez anos, seguramente de forma tão diferente e até ingénua face àquilo que veio a ser, é e será. Eu não estava lá para ver, mas só pode ter sido assim, da mesma forma que uma semente plantada não revela logo a forma como irá lançar as suas raízes. O que o MPMP é hoje não poderia ter sido adivinhado nem projectado por ninguém há dez anos, e na sua condição assumida de movimento é impossível prever onde estará daqui a outros dez.

De acordo com a visão líquida de Tolstói, o MPMP simplesmente cresceu porque era uma semente viçosa e promissora, plantada em terra fértil e cuidada por muitas mãos sabedoras, que dessa forma cresceu através dos seus ciclos de desafios e bonança, precariedade e estabilidade, abundância e escassez, marginalidade e reconhecimento. Sempre em movimento e, logo, sempre vivo. Pelo caminho ficaram dez anos, os primeiros dez, que num ecossistema delicado como o nosso deixam uma marca já indelével na música portuguesa e em Portugal, um legado que, mais que celebrar e louvar, agora pretendemos ler e interpretar.

E o que é isto de o Movimento ser Patrimonial pela Música Portuguesa? É dado por certo que Portugal sempre foi um país mais atento às suas letras do que aos seus sons, pelo menos é isso que proclama a nossa diplomacia oficial quando se gaba de um património literário de referência, tal como a Holanda faz com a sua pintura ou a Áustria com a sua música. Mas mesmo nas letras, que é como quem diz na nossa língua, quando foi que vivemos o nosso património como quem habita uma casa? No Renascimento, éramos permeáveis aos castelhanos. No Barroco, aos italianos. Quando românticos, decadentes ou até colonialistas-ultrajados-pelos-ingleses, adulávamos os franceses. Já no século transacto, passámos uma meia centena de anos fatalmente ensimesmados, descobrindo (ainda que por decreto governamental) que afinal também tínhamos língua própria.

Não surpreende, pois, que tenha sido no próprio país da língua de Camões que este, mesmo sendo príncipe dos poetas de seu tempo, viveu pobre e miseravelmente e assim morreu.

Na música, como sabemos, o caso do património é ainda mais delicado. Também tem o seu ecossistema entretecido de produtores, mediadores e consumidores, com um passado, presente e, seguramente, futuro. Até aqui nada de novo, tudo é como manda a regra, mas é necessária a ressalva de esta ser uma cadeia extremamente frágil, por vezes invisível, perenemente marginal e só raras vezes independente.

É importante não perder de vista que o património, por si só, é um artefacto. É preciso que esteja vivo e activo para verdadeiramente existir, e é neste sentido que a pulsão arqueológica de resgatar velhos manuscritos esquecidos no arquivo da Sé de Lamego se abre, como que em zoom out, para uma perspectiva de rede em que este património adormecido deve ser absorvido por um ecossistema em funcionamento. Quando primeiro ouvi falar do MPMP, julguei que fosse esse o tipo de defesa que faria do nosso património: tirar o pó aos mestres do passado, da mesma forma que um bom restauro devolve a um velho óleo as suas cores originais. Só mais tarde, quando fiz o meu próprio zoom out, entendi que fazer apenas isso seria insuficiente, pois o contributo de cada agente deste ecossistema tem de ser em várias frentes, tal como um corpo de bombeiros acode ao mesmo incêndio por diversas vias. Mas ainda antes de eu entender isso, já o MPMP o fazia, de então até hoje. É precisamente assim que o vejo, inserido numa rede vasta, desdobrando-se em funções permeáveis e comunicantes, activo em várias frentes: produção, descoberta, interpretação, difusão, criação, mediação, pensamento, diálogo, tudo actividades imputáveis ao MPMP ao longo dos seus primeiros dez anos e campos em que serviu o seu meio, ao invés de se servir deste. E tudo isto feito com esse espírito de movimento, numa lógica aturada e caso a caso.

Quero evitar dizer que o MPMP escreveu história, porque isso seria o mesmo que dizer que o legado destes dez anos já faz parte do passado. Prefiro dizer que, através da existência activa do MPMP, o ecossistema da música portuguesa e da música em Portugal se fortaleceu, o que equivale a dizer que precisamos de mais, sempre mais movimentos como este à nossa volta.

 


Artigo escrito no âmbito
do 10.º aniversário do MPMP

Sobre o autor

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Licenciado em Ciências Musicais pela Universidade Nova de Lisboa e em Direcção de Orquestra pelo Conservatorio di Musica Luca Marenzio di Brescia e Italian Conducting Academy em Milão, concluiu em 2018, com honras e enquanto bolseiro Eckstein e Fulbright, o mestrado em Direcção de Orquestra na Bienen School of Music, Northwestern University, onde foi aluno de Victor Yampolsky. Dirigiu e trabalhou com orquestras de sete países, e assistiu Christopher Rountree e Alan Pierson, entre outros. Em 2014, funda em Itália a Orchestra di Maggio, com quem se apresentou em várias cidades, e que foi objecto de um documentário e do apoio da Fondazione Torchiani. Em 2014, com os cursos “O que ouvir na música clássica?”, começou um percurso ligado à pedagogia e apreciação musical, com especial atenção ao pensamento contemporâneo sobre a Música, ao seu lugar na Cultura e à sua relação com as outras artes.