No mundo de Victor Gama cabem instrumentos da sua autoria, projectos de investigação e intercâmbio cultural que cruzam continentes, uma vasta discografia e nomes como Kronos Quartet. O músico e compositor luso-angolano prossegue a sua “compulsão para a viagem”. Em Lisboa, apresentou há pouco a peça multimédia Vela 6911, um concerto com solistas da Orquestra Gulbenkian e a participação de Salomé Pais Matos e do próprio compositor, que tocaram acrux, toha e dino, sob a direcção de Rui Pinheiro. De que forma o seu percurso musical se cruza com as confissões de uma tenente sul-africana?
A direcção musical da Orquestra Sinfónica de Chicago fez-me um convite para que desenvolvesse uma obra em que os meus instrumentos estivessem em primeiro plano e interagissem com os instrumentos e músicos da orquestra. Foi-me dada total liberdade para escolher o tema da obra, apenas com uma única limitação no número de músicos. Pedi-lhes oito músicos e um maestro e eles aceitaram. Vela 6911 já estava há alguns anos nos meus planos, pois faz parte do projeto “tectonik: TOMBUA – geografias em colisão” que desenvolvo desde 2006 no deserto do Namibe, em Angola. Só não sabia como ia conseguir realizar esta fase do projecto porque o mesmo envolvia uma viagem à Antárctida. A viagem era importante para recolher vídeo e som, envolver-me e sentir o material com que estava a trabalhar, entender melhor toda a documentação desclassificada que já tinha referente ao teste nuclear que a África do Sul realizou secretamente em 1979. Quando Mason Bates me fez o convite não hesitei em propor Vela.
Estamos a falar dos anos 70 e do regime do Apartheid.
Sim, anos 70-80, a seguir à independência de Angola. A mais avançada tecnologia militar estava estacionada no país. A África do Sul tinha o maior e mais desenvolvido poderio militar africano, incluindo as armas nucleares que entretanto desenvolvera. A partir de 2006, comecei a ir a Cidade do Cabo, e lá estabeleci contacto com a Stacey Hardy, uma jornalista e activista que estava a fazer uma investigação muito aprofundada sobre os programas de armas de destruição maciça sul-africanos. O problema é que a informação não estava disponível. Neste caso, as pessoas que participaram nesses programas estavam ou estão sob compromissos de confidencialidade muito restritivos. Não podem falar sob risco de serem até presas.
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Reuniu muita informação até concluir a peça Vela 6911. Quanto tempo demorou este período de investigação?
Pelo menos uns dois anos. Tudo começou em finais de 2010, quando fui convidado para uma residência artística no Stanford Institute for Creativity and the Arts. A colaboração com a Biblioteca da Universidade de Stanford foi crucial, permitiu-me ter acesso a documentação que, de outra forma, não conseguiria encontrar. Eu já tinha a ambição de fazer Vela 6911, mas a decisão foi tomada nessa altura, quando vi a possibilidade de obter mais informação. Praticamente todas as minhas últimas peças e projectos têm sido baseados num trabalho de pesquisa. A investigação é muito importante porque é a partir daí que vou encontrar elementos significativos para a construção da peça ou de uma narrativa. Tudo neste projecto assenta nessa pesquisa. Um dos andamentos de Vela 6911 baseia-se numa série de documentos sobre uma experiência feita pelos Estados Unidos, na ilha de Amchitka, nas Aleutas do Alaska, umas ilhas já muito próximas do Japão e da ex-União Soviética. O objectivo da experiência era o de poder detectar com precisão onde ocorriam outras explosões nucleares subterrâneas realizadas pelos países que desenvolviam armas nucleares. O resultado da experiência são uns gráficos obtidos por sismógrafos situados em diferentes partes do planeta e que tentei interpretar e transcrever para os instrumentos de orquestra que utilizo na peça. A entrada de um instrumento, por exemplo, corresponde aos picos que surgem nesses registos.
A viagem que fez à Antárctida, em Janeiro de 2012, foi essencial para completar este processo de criação.
Foi altamente essencial. A ideia era ilustrar a peça, com vídeo, através do ponto de observação muito pessoal da Lindsey Rooke.
Enquanto espectadora – e imagino que outras pessoas na plateia da Gulbenkian terão pensado o mesmo –, fiquei curiosa sobre a forma como obtiveram aquelas belíssimas imagens.
Eu andei toda a viagem “pendurado” em vários sítios do barco a tentar encontrar ângulos. Fui com o Álvaro Barbosa, director do departamento de Som e Imagem da Universidade Católica do Porto,e estávamos numa viagem de grupo que leva pessoas interessadas em ir à Antárctida, por motivos turísticos ou científicos. Há uma passagem em que a Lindsey escreve: “Esta manhã acordei e vi dois golfinhos à frente do barco como se estivessem a conduzi-lo”. Fui toda a viagem à procura de golfinhos, sem sucesso, e só no fim, mesmo no último dia, quando já estávamos de regresso, eles apareceram e foi possível obter aquelas imagens. Uma vez que o ponto de observação era do barco, era muito importante a interacção com o mar e com o gelo, daí que procurámos fazer muitos planos estáticos e tínhamos de filmar muito. De tal forma que, entretanto, começou a correr o rumor de que estavam dois repórteres da National Geographic a bordo… [risos]
A estreia em Chicago, em Março de 2012, antecedeu a de Lisboa, em Janeiro deste ano. Houve alguma preocupação em trabalhar para o público americano e para o português de forma distinta?
De forma alguma, isso é impossível. Não se sabe bem qual será o público. Quando fui para Chicago estava completamente às escuras a esse nível e o público que apareceu era bastante jovem, incluindo estudantes de escolas secundárias. Estava inserido num ciclo de música contemporânea de nome MusicNOW, no qual se apresentam novos compositores com propostas muito específicas e linguagens muito particulares. A grande diferença entre os dois espectáculos é que, por falta de tempo, a peça que apresentei nos Estados Unidos tinha menos interacção entre os meus instrumentos e os da orquestra. Isso foi muito mais desenvolvido e melhorado para o concerto da Gulbenkian, em Lisboa, e fez com que surgissem novos andamentos, até porque a obra duplicou em duração.
É fácil a formação de um público para essas linguagens musicais tão particulares?
A minha experiência diz-me que existe sempre público, as pessoas estão muito abertas a novas linguagens. O grande problema é o intermediário entre o público e o compositor: o músico, o artista ou o performer. A questão essencial é convencer um programador a comprar um espectáculo. Deveria haver um compromisso maior por parte das instituições, sobretudo as que têm maior capacidade, porque as obras só podem ser divulgadas se forem programadas. Os programadores têm de acreditar nos criadores, acompanhar o seu trajecto, conviver com eles, e isso não acontece.
É sobretudo um problema de gestão cultural?
Acho que sim. Embora haja um pouco mais de sensibilidade para esta questão. No caso do Vela 6911, a Fundação Gulbenkian prestou apoio à viagem e à montagem e propôs-me a apresentação da peça em Lisboa. Houve total abertura e acho que este é um exemplo de como as instituições podem e têm de correr riscos. Conhecer a organização da Orquestra Sinfónica de Chicago também foi uma experiência muito interessante. O maestro Ricardo Mutti percebeu que é preciso continuar a inovar e convidou dois jovens para serem compositores residentes, um dos quais o Mason Bates. Trata-se de um DJ doutorado em composição musical em Berkeley, que traz toda a sua cultura urbana da música electrónica para o interior da orquestra, coloca-se mesmo no centro da orquestra a tocar os seus beats. É fantástico, porque houve uma resposta imediata dos jovens que começaram a vir em grande número aos concertos da orquestra. Sinto que nos Estados Unidos há uma abertura muito grande a novas abordagens.
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Em Setembro, o seu trabalho esteve em exposição na Royal Opera House, em Londres, uma oportunidade para desenvolver a interactividade dos objectos que executa.
Eu faço exposições desde 1998 e a interactividade está sempre presente: o público é convidado a tocar nos instrumentos. Há sugestões de trajectos e formas de proporcionar ao público uma experiência musical. Nessa exposição, pude dar um outro passo, uma vez que tinha meios que me permitiram trabalhar com instalações de instrumentos. Em Novembro tive outra, em Madrid, na Fundação Carlos de Amberes, que ainda funcionou melhor desse ponto de vista, porque pude melhorar as instalações que apresentei em Londres.
Por serem instrumentos tão invulgares, o manuseamento poderá ser um desafio? As pessoas compreendem o objecto que têm à sua frente?
Sim. É surpreendente. Algumas pessoas tocam de uma maneira que eu nem sabia que era possível. Eu próprio tenho aprendido um pouco mais sobre os instrumentos e as possibilidades que cada objecto tem. Mecanicamente, em relação à resistência dos instrumentos, as crianças são um grande teste… [risos]
Já tem no seu percurso vários workshops para crianças. O contacto com as camadas mais jovens continua a ser uma prioridade?
As crianças são incrivelmente musicais, têm um talento quase inato para a Música. Os workshops estão normalmente associados a um concerto ou a uma instalação minha. O que pretendo é, sobretudo, colocar as crianças em contacto com objectos físicos com os quais não lidam habitualmente e que estão quase a desaparecer. Recentemente organizei uma oficina de construção, na Gulbenkian, em que puderam construir e levar para casa uma txiumba, um instrumento tradicional angolano. É preciso lembrar que no interior de Angola não há nintendos nem iPads…, enquanto que a maior parte das crianças portuguesas pensa numa consola desde muito cedo. Raramente uma criança de oito anos tem um instrumento musical em casa. Se não for na escola, é extremamente importante que haja programas educacionais pelo menos nos centros culturais.
O facto de estarem envolvidas no processo de criação do instrumento permite-lhes desenvolver uma relação com o próprio objecto.
Exactamente. E que vai durar anos. Estas oficinas realizam-se no âmbito do projecto Pangeia Kids, em que se pretende que as crianças mantenham uma relação com o instrumento que construíram.
Dos vários instrumentos que já tocou ou que já concebeu, quais os que mais o fascinam?
[pausa] Não é fácil escolher. Actualmente gosto de tocar o acrux, a toha e o dino. Dão-me uma gama de sonoridades e possibilidades para explorar bastante grande. […] Para ler, ouvir, descobrir: www.victorgama.org
ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 8 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).