A Ópera não vive sem a Literatura?

A ópera não vive sem o libreto. Não vive sem uma acção dramática que se polariza entre personagens. Embora haja pelo menos uma ópera só com uma personagem, La Voix Humaine, de Francis Poulenc. Em todo o caso, essa personagem é única em cena, mas está a falar ao telefone durante todo o tempo com o namorado, de algum modo presente. Mas a ópera implica uma acção. Fundamentalmente implica sempre um texto com características para ser utilizado musicalmente, para ser cantado.

Quando aceitou o convite de Nuno Côrte-Real e do São Carlos concebia a ideia de este ser um projecto inovador?

Nunca me tinha passado pela cabeça… (risos) Eu estava nessa altura em Bruxelas, a terminar o meu segundo mandato como deputado europeu, e um dia recebi um mail do director do São Carlos a propor uma encomenda para escrever o libreto. Fiquei um pouco surpreendido. Em Lisboa, conversei com o Nuno Côrte-Real e assim as coisas começaram. Foi uma experiência curiosa porque nunca me tinha ocorrido que viria a escrever um libreto.

Não era um sonho ou projecto?

Não… nem sequer um projecto. Ouvir, ver ópera é uma prática a que há muitos anos me dedico. Daí a colocar-me na situação de co-autor vai uma distância enorme. Por outro lado, as relações entre a palavra e a música têm-me preocupado a um nível completamente diferente, que é o do Fado. Escrevi bastantes letras para fados.

 

[…]

 

A Língua Portuguesa pode e deve ser cantada?

Qualquer língua pode e deve ser cantada. É possível que nem todos os resultados sejam os mais interessantes, mas isso depende muito também do tipo de música, do estilo de composição.

No que a esta ópera diz respeito, o seu trabalho em Banksters teria sido completamente diferente noutra língua?

Não sei. Estamos numa época em que essas relações entre a Língua e a Música são mais livres. A capacidade de pôr em cena uma determinada ideia é muito mais livre hoje do que era, com certeza, no tempo de Verdi ou de Donizetti. As convenções funcionavam com muito mais rigor e exigência. Por exemplo, salvo erro, na ópera de Paris, no século XIX, não era concebível uma ópera sem bailado. Fazia parte daquele código operático. Hoje é relativamente indiferente. A liberdade é total nesse aspecto. Acho eu, que não sou compositor.

 

[…]

 

Não receou alguma censura?

Não. Recear hoje em dia? Dizem-se as maiores enormidades sem censura, porque é que havia de funcionar no plano da Literatura? Não tinha nada que funcionar. A censura que tem de existir é do próprio autor em relação àquilo que está a fazer, seja ele pintor, poeta, cineasta ou músico. É um dispositivo de auto-exigência de qualidade, faz parte da estratégia do próprio autor. Procurei um vocabulário muito directo, que de algum modo pudesse dar mais vivacidade àquilo que se está a passar em cena. A figura da mulher é uma figura com quem o marido ja não tem condições para ter relações, no plano sexual, e ela di-lo em cena. Também o diz na peça do Régio, no meu libreto diz de uma maneira mais directa (risos).

 

[…]

 

No cômputo geral, pode ser considerado um trabalho solitário?

Completamente. As coisas não funcionaram na bidireccionalidade, eu não estive a ouvir música do Nuno Côrte-Real para trabalhar no que estava a escrever. Fui entregando os vários materiais e, depois, conforme a reacção dele, alterava-se aqui e ali. Depois tratava-se de dar um nome às personagens, que tinha de ser diferente. Santiago quer dizer Jacob. Convém notar este aspecto. Santiago deriva do latim Sancti e de Jacob.

Assim como Rigoletto remete para o Bobo.

Exactamente. O Anjo, na peça do Régio, é muito tratado como o Bobo. Remete para o Bobo epor isso, aqui, para a tradição da ópera.

Mas temos também expressões como ‘recibos verdes’ e offshores.

Pareceu-me que seria uma maneira de dar algum realismo a uma situação ligada à presença do banco. Embora, para mim, aquilo não passe de uma espécie de um acesso de loucura do próprio presidente do banco, tem os seus fantasmas, um deles o Anjo, o Angelino Rigoletto. Angelino é uma brincadeira com a língua italiana. No fundo, é um problema de demência, embora grotesco com todo esse aspecto caricatural que procurei imprimir ao texto, mas a partir de um aspecto altamente expressionista e violento que já estava na peça do Régio.

Imprimir esse tom satírico é especialmente complexo?

Eu nunca tinha experimentado, assim, durante um libreto inteiro. (risos) Não me dei mal com o processo porque me deixei levar ao sabor de cada cena. Houve aspectos que foram engendrados por esse processo de velocidade de escrita acompanhado de remissões para outros textos. Quase automaticamente apareceu na minha cabeça a hipótese de remissão. Aquela parte da Gertrude Stein, a rose is a rose is a rose, apareceu de repente e entrou. Há um verso de Camões, do Velho do Restelo. Há um verso de António Nobre, um de Camilo Pessanha. Há várias coisas que ou são desmontadas no próprio texto ou são tão evidentes que não precisam de desmontagem.

 

[…]

 

Qual foi a sensação de subir ao palco na noite de estreia para os agradecimentos?

Não tinha pensado nisso, nem tive tempo sequer de pensar em sensações… mas foi evidentemente agradável. Foi um momento de forte aplauso, mas partilhado com o compositor e com os restantes intervenientes. Para mim foi uma sensação diferente, nesse aspecto. Embora já tenha enfrentado públicos em várias situações, aqui é a sensação de se fazer parte de uma equipa, que nos transcende em muitos aspectos.

Há uma certa intencionalidade de trazer mais pessoas à ópera e de torná-la uma arte menos “minoritária”?

Penso que a ópera teve sempre um enorme público. Em Lisboa tem a tradição do Coliseu. Os grandes conhecedores de ópera iam ouvir ao Coliseu, mais do que ao São Carlos. O problema da ópera é que é um espectáculo caríssimo. Provavelmente hoje tem muito mais público do que jamais teve, mas dilui-se quando vemos, por exemplo, um cantor encher um estádio. Embora já tenha havido situações desse género, é mais complicado levar a ópera à cena num espaço muito grande. E, portanto, há sempre essa dificuldade de promoção da ópera. Sobretudo promoção com qualidade, porque se exige cada vez mais qualidade nos intérpretes. Com as novas tecnologias de registo das interpretações não há fífias admitidas, não pode haver falhas. Tudo isso requer uma grande sofisticação de meios. Mas é um espectáculo altamente popular, sobretudo quando entre a ópera e o melodrama há uma fronteira ambígua. Com todo o lado kitsch e melodramático que tem – meninas que morriam tuberculosas, mas a cantar coisas lindíssimas – isso atraía as pessoas. Um bocado como hoje a novela. Essa projecção das frustações do dia-a-dia no plano da arte foi muito importante, a partir de certa altura, pelo menos na cultura europeia. A partir do século XIX foi importantíssimo, seja como divertimento seja como drama, tragédia. E vemos isso, sobretudo na ópera italiana, com toda a evidência.

De toda a execução do libreto, realça algum momento?

Gostei bastante da parte da terminologia bancária. Gostei também daquelas frustrações da Mimi Kitsch. Mas devo dizer que surgiu tudo muito naturalmente, à medida que a personagem se desenhava no meu espírito, as palavras acompanhavam esse desenho. Não “penei” para chegar lá. Tendo um texto de referência na frente, também havia um fio condutor, essa relação não devia ser perdida. Mesmo que seja estabelecida em termos discutíveis, a relação está lá.

Gostaria de escrever um libreto exclusivamente da sua autoria?

Com certeza. Não estou a pensar nisso agora… (risos) mas podia ser uma experiência curiosa. Obrigaria a pensar nas peripécias de certo tipo de acção, de caracterização das personagens. Aí teria de discutir com o compositor em termos completamente diferentes. Falo de uma negociação artística. Seriam protocolos de criação que permitissem provavelmente outro tipo de produto.

Nesta obra, ou noutras obras, como se ganha a sensibilidade – sua ou das outras pessoas – para separar a sua veia literária da militância política?

Acho que é completamente natural. Não tem a ver uma coisa com a outra. A minha militância política procura utilizar a Língua Portuguesa em termos de eficácia. É natural que a minha experiência literária tenha um papel, mas não há contaminação do meu trabalho como escritor na minha actividade ligada à análise e intervenção política. Historicamente, as outras pessoas distinguiram sempre a minha produção poética do meu comportamento político. Já não é tão nítido que o façam em relação à minha obra de ficcionista. Não sei porquê… A nossa imagem passa para o público com algumas marcas de origem. Como comecei a escrever poesia há muitos anos, e a ficção veio mais tarde, a imagem que se fixou tem mais a ver com a do poeta.

A crítica é-lhe indiferente?

Não. Acho que devemos ter sempre uma certa humildade em relação às reacções e posições críticas. Como qualquer autor que se preze, se uma crítica diz bem de mim fico muito satisfeito; se diz mal depende dos termos em que o faça. Pode haver casos que não reconheça que tenha fundamento e discorde, em que ache que as observações passaram ao lado. Faz parte do trabalho do autor sujeitar-se a crítica, quer à genérica do público quer à especializada. Tem de conviver com isso e aproveitar essa situação. Desde que não seja uma prima donna com um ego do tamanho da Torre dos Clérigos, isso é outra questão…

 

[…]

 

Quais os seus gostos musicais?

Sou muito cerebral quando ouço Bach… emotivo quando ouço Beethoven e Schubert… e posiciono-me entre estes dois quando ouço Mozart. Sobretudo tenho uma grande preferência por Bach, pela construção das suas peças, pela maneira como a palavra se relaciona com a música, pelo lado especulativo e contrapontístico das suas obras teóricas. A Arte da Fuga, A Oferenda Musical, O Cravo Bem Temperado… são monumentos do espírito humano que não me canso de ouvir.

Pode revelar alguns dos seus próximos projectos?

Posso. Tenho um livro de ensaios que sairá em Junho – textos sobre literatura, ensaio, poesia – que se vai chamar Discursos Vários Poéticos. E tenho agora dois projectos: um de ensaios sobre a Europa e outro o terceiro volume de uma trilogia.

Queria aproveitar para informá-lo que este terceiro número da Glosas não vai aderir ao acordo ortográfico. Suponho que não esteja em (des)acordo.

Não, estou completamente de acordo. Acho que é uma barbaridade que descaracteriza a nossa língua. E não tem a ver com o lado gráfico, é descaracterizar em aspectos que se vão pagar muito caro, porque vai alterar a pronúncia de inúmeras palavras portuguesas, de Portugal. No fim, as escolas não vão conseguir aplicar. Estamos a cair num plano em que a ortografia deixa de o ser para ser um conjunto de regras para a escrita. Vamos entrar num plano de escrita selvagem.

 

[…]

 

Ouvi-o há dias descrever o actual cenário politico como uma “opereta”.

Repare, neste momento acho que já nem é uma opereta, é uma espécie de ópera bufa. O problema português é que a política se perverteu e degradou de tal maneira que os cidadãos acabaram a não acreditar nela. Quando devia ser uma actividade extremamente nobre, em que as opções, em presença, fossem discutidas a fundo e o eleitorado se movesse fundamentalmente por um juízo sobre essas opções. O eleitorado tem-se norteado por quem lhe promete mais sem perceber que estão a prometer puras fantasias, insusceptíveis de serem cumpridas. Se continuarmos assim então Portugal acabou como país. Se soubermos dar um “golpe de rins”… talvez as coisas se possam compor.

 


 

ARTIGO PUBLICADO NA GLOSAS 3 ( Clique aqui para ler o artigo completo na versão impressa ).

Sobre o autor

Imagem do avatar

Mónica Brito nasceu em Lisboa, onde estudou Comunicação e Marketing. Com um percurso pelo teatro amador até à crítica de cinema, foi fundadora da equipa portuguesa do 'magazine online' 'CafeBabel', com a qual venceu o Prémio Carlos Magno para a Juventude, atribuído pelo Parlamento Europeu. Os cientistas asseguram que nunca irá perder o vício do jornalismo, nem a admiração pelas artes. Colabora com a revista 'glosas' desde o primeiro número.