Vasco Mariz (1921 – 2017) foi um exemplo de dedicação à memória de nossa história e um espírito guerreiro pelas grandes causas da música brasileira que defendeu. Ocupava a cadeira n.º 40, da Academia Brasileira de Música, patronímica de Mário de Andrade e fundada por Renato Almeida. Para uma homenagem póstuma a esta grande figura da Música, das Artes e da Cultura no Brasil optei por usar as suas próprias palavras e assim reavivarmos suas ideias e seus ensinamentos. “Ouvindo a suas próprias palavras”, é como se tivéssemos, ainda entre nós, a sua figura serena e perspicaz, sempre pronta a defender a nossa música. Se o acadêmico é simbolicamente considerado um imortal, Vasco Mariz continuará vivo entre nós, muito mais que pelo simbolismo desta tradição, mas pelo grande legado que ele nos deixou, pela portentosa obra, pelo testemunho de seus contemporâneos e pelas personalidades que desempenharam importante papel na cultura brasileira e que tiveram suas carreiras iniciais apoiadas e estimuladas por ele. Vejamos apenas alguns exemplos de seu legado.
Em uma palestra proferida por Vasco Mariz, na Academia Brasileira de Música, em 2007, na série de depoimentos “Trajetórias”, assim ele se refere ao período de 1977 a 1982:
«Foi nesse período que escrevi meu livro mais importante — a História da Música no Brasil. Hesitei em atender o pedido do editor Enio Silveira, da então poderosa Civilização Brasileira, devido à distância que me separava do Brasil [nesta época ele era embaixador do Brasil em Israel], mas o correio funcionou bem e obtive as informações de que precisava. Consultei Luiz Heitor amiúde pelo telefone em Paris e no ano seguinte da saída do livro, em 1982, recebi o Prêmio José Veríssimo, como o melhor ensaio histórico, da Academia Brasileira de Letras.»
Na epígrafe da 6ª Edição deste precioso livro, Vasco Mariz faz a seguinte citação de Romain Rolland: “Seuls ceux que ne font rien, ne se trompent jamais” (somente aqueles que não fazem nada, jamais erram). Mariz justifica esta epígrafe, dizendo na nota introdutória do livro que “Utilizei a frase de Romain Rolland para tentar inocentar-me de eventuais erros. A intenção foi a melhor e estarei pronto a corrigir-me em posterior edição, caso me seja provado algum equívoco ou defeituosa redação”. Esta ressalva e a lembrança de Luiz Heitor revelam um dos traços da personalidade de Vasco Mariz. Ele estava sempre pronto a ouvir sugestões de seus amigos e rever as posições que assumia. Fazendo uma modesta auto avaliação, Mariz declara: “Creio que o texto final é satisfatório, na medida do possível. Selecionar e analisar dezenas de compositores de orientação tão distinta não foi tarefa fácil e agradeço a José Maria Neves, Gilberto Mendes, Ricardo Tacuchian e Edino Krieger pelas valiosas sugestões recebidas. Tenho esperança de que este livro continuará a ser de utilidade para os estudiosos da música brasileira, especialmente para os alunos dos conservatórios e dos departamentos de música de universidades”. A História da Música no Brasil é um livro dinâmico, em constante mutação e em progressiva atualização, desde a sua primeira edição, pela Editora Civilização Brasileira, em 1981. Nesta ocasião a obra foi prefaciada pelo eminente musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo que, em 1956 escrevera o clássico 150 Anos de Música no Brasil (1800-1950).
Em 2007, na palestra referida anteriormente, na Sala de Eventos da Academia Brasileira de Música (com texto atualizado um ano depois), assim se pronunciou Vasco Mariz sobre uma outra obra que ele acabara de escrever e que seria publicada em comemoração aos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, A música no Rio de Janeiro no tempo de D. João VI, pela editora Casa da Palavra (2008): “Essa obra veio à luz em abril de 2008, em bonita edição gráfica muito elogiada, ao lado de outros livros encomendados com o mesmo objetivo. Se levarmos em conta que já alcancei os 88 anos de idade, tudo indica que esse livro será minha última obra sobre música”. Mariz estava completamente enganado porque, quatro anos depois viria a lume a 8ª edição da História da Música no Brasil, totalmente atualizada.
Antes da produção de sua História da Música no Brasil, Mariz já havia embarcado no que ele chamou de “perigosa aventura”. Trata-se da primeira biografia de Villa-Lobos, tarefa pioneira que ele empreendeu, estimulado por Renato Almeida e Luiz Heitor. Este escrevera que “somente a ousadia de um jovem de 25 anos poderia enfrentar tamanha tarefa, pois ninguém mais, nem Muricy, quem melhor conhecia o mestre, se havia atrevido”. Luiz Heitor chegou a advertir ao jovem pesquisador: “cuidado, ele é um monstro e vai engolir você, seu livro vai ser uma verdadeira autobiografia e vão rir de você, que se prestou a isso”. O livro saiu em 1949, em edição da Divisão Cultural do Itamaraty e até hoje é uma citação imprescindível em qualquer relação bibliográfica sobre Villa-Lobos. No capítulo introdutório da 11ª edição de seu livro, Mariz, informa como, pela primeira vez, ele contextualiza a posição de Villa-Lobos, posição que passou a ser o padrão de todos os escritores posteriores que abordaram o mesmo tema. Assim, Mariz afirma que,
«O compositor carioca foi o desbravador, aquele que aplainou o caminho espinhoso da brasilidade para as novas gerações. Sua obra atravessou, do modo mais brilhante, os dois primeiros estágios do movimento [referia-se à Semana de Arte Moderna] e penetrou no mare tenebrosum do nacionalismo puro, exteriorizando, de quando em vez e sem recorrer diretamente ao folclore, uma brasilidade espontânea e imaculada. No Noneto, em alguns dos Choros, na sua música de câmara do período final, numa ou noutra Bachiana, conseguiu a expressão musical do Brasil.»
Continuando, Mariz afirma que “Villa-Lobos criou a música nacionalista no Brasil, despertou o entusiasmo de sua geração para o opulento folclore pátrio, traçou com linhas vigorosas, a brasilidade sonora. A obra de Villa-Lobos representa o sólido alicerce sobre o qual os jovens compositores brasileiros estão construindo um edifício imponente.” Nada melhor para traçar um perfil de Vasco Mariz do que usar as suas próprias palavras, sempre elegantes, pertinentes e visionárias. Este era o Vasco como exemplo e como guerreiro, e que deixava para os jovens, através de suas obras, o retrato musical do Brasil. Heitor Villa-Lobos Compositor Brasileiro já chegou à 12ª edição. A obra já mereceu duas edições em inglês, uma pela Escola de Estudos Inter-Americanos da Universidade da Flórida (1963) e outra pelo Brazilian-American Cultural Institute, Inc, de Washington (1970) e uma edição francesa, pela Seghers (1967). Em 1977, pela Musyka, da então Leningrado, saiu um edição russa pirata. Em 1987 saiu a versão do mesmo livro em espanhol (Bogotá). Em 1989 foi publicada a mais bela edição da obra, desta vez em italiano, pela Azzali Editore, sob a supervisão do musicólogo italiano Gaspare Nello Vetro e com o apoio de Maria Euterpe Nogueira, então Diretora do Centro Culturale ítalo-Brasiliano di Milano.
Uma terceira obra pontual de Vasco Mariz para a musicologia brasileira foi A Canção brasileira de câmara, em sua 6ª edição, em 2002, pela Francisco Alves. Vasco Mariz, na década de 40, já possuía alguma experiência de cantor lírico, tanto no Rio de Janeiro como em Porto Alegre. Mas ele mesmo confessa que “impossibilitado de continuar no teatro enquanto trabalhava no Itamaraty, comecei a dedicar-me à música de câmara, onde conseguiria meus maiores êxitos como intérprete”. Em entrevista concedida a mim, referindo-se a uma turnê de 8 concertos em 20 dias, em 1952, nos Estados Unidos, ele afirmou que “foi horrível repetir o mesmo recital, fazer os mesmos gestos, pegar o trem e correr para outra cidade, lutar com o acompanhador, com medo de resfriar-me, etc. Sai-me bem e o empresário quis me contratar, mas disse-lhe que não: tinha uma boa carreira, família, duas filhas pequenas e não queria essa vida de andarilho musical. Não me arrependi.” Com o tempo Vasco Mariz, que estudara canto no Conservatório Brasileiro de Música, nunca deixou de ser um entusiasta pela arte do canto. Mas em 1955, em duas ocasiões, encerrou sua mal iniciada carreira de cantor, uma delas, gravando, pela etiqueta Sinter, um LP com canções de Mignone, Guarnieri, Siqueira, Claudio Santoro, Heckel Tavares e Guerra-Peixe. Como vemos, sempre preocupado na divulgação da música brasileira. A última investida em uma carreira de cantor, foi a sua participação na ópera La Gioconda, de Ponchielli, no papel do Doge Alvise Badoero, no Teatro San Carlo de Nápoles. Sua carreira diplomática acabou absorvendo todo o seu tempo que apenas sobrou para escrever as grandes obras da musicologia brasileira. Na Introdução da referida obra A Canção brasileira de câmara, Mariz revela todo o seu encantamento pela voz humana, particularmente pelo canto de câmara, quando ele afirma:
«O canto de câmara é a forma mais refinada da arte vocal na música. A canção popular ou a canção folclórica transmitem-nos a mensagem singela do povo, ora eufórica, ora nostálgica, mas nem sempre nos proporciona uma emoção estética elevada, espiritual. O mesmo se dá com a música dramática, a ópera. São tantos os fatores que contribuem para uma excelente apresentação operística que só de quando em vez sentimos aquele êxtase perante a grande arte. Sou dos que acreditam encontrar-se essa grande arte nos pequenos painéis, nas miniaturas, nas pequenas formas musicais. Não está quase todo o Tristão e Isolda contido na canção Träume? Não representam os Lieder de Schubert o sentimento romântico dos povos germânicos? Será que se pode deixar de reconhecer o brasileirismo da Toada para você, de Lorenzo Fernandez?
O canto de Câmara, apesar de todas as dificuldades que o intérprete tem de transpor, é o gênero musical de onde mais frequentemente somos arrebatados ao terra-terra quotidiano. A voz humana ainda é o mais belo, o mais melodioso, o mais sensível dos instrumentos.»
A história deste precioso livro é muito curiosa. Sua primeira edição se deu em 1948, na cidade do Porto, sob o nome de A Canção de Câmara no Brasil. Quando Mariz retornou ao Rio de janeiro, em 1954, ele conheceu o famoso arquivo de música popular de Almirante, atualmente localizado no Museu da Imagem e do Som. Assim, na segunda edição do seu livro, em 1959, Mariz acrescentou uma alentada parte dedicada à música popular, mudando o título do livro para A Canção Brasileira. O livro alcançou enorme sucesso, seguindo-se mais três outras edições em 1977, 1980 e 1985, cada uma delas sempre com novos acréscimos. Ao preparar a 6ª edição, Mariz resolveu transformar sua obra em dois livros distintos que passaram a se chamar, respectivamente, A Canção Brasileira de Câmara e a Canção Popular Brasileira (ambas pela Livraria Francisco Alves, em 2002).
Aproveitando ainda o livro A Canção Brasileira de Câmara, para mostrar o pensamento do grande historiador e musicólogo, transcrevo outro trecho onde ele fala do papel da poesia na criação do Lied:
«O problema central da canção é a escolha do texto a ser musicado. O poema é essencial no lied, na canção de câmara ou de concerto, e até mesmo na canção popular. A sua escolha decide os destinos de determinada melodia, valorizando-a ou barateando-a. Na canção de câmara, interpretada em recitais ou concertos, o compositor comenta o poema depois de sua leitura atenta, após se sentir embebido pela emoção estética que se desprende daquela obra de arte. A melodia surge então, com maior ou menor facilidade, do próprio texto poético. Já na canção popular assistimos por vezes a superposição de versos a melodias anteriormente compostas, com inevitável sacrifício do texto poético.»
Além destes três pilares da bibliografia musical brasileira, Mariz escreveu um sem número de obras sobre música no Brasil. Por exemplo, em 1997 foi o organizador da alentada obra Francisco Mignone, o homem e a obra onde ele se encarregou de vários capítulos. O planejamento do livro, nos conta Mariz em sua apresentação, foi feito em 1986, a quatro mãos, com Edino Krieger, então Diretor do Instituto Nacional de Música da Funarte, mas devido às conjunturas políticas, inclusive com a própria extinção da Funarte pelo presidente Collor de Mello, a obra só foi publicada 10 anos mais tarde, quando era coordenadora de Música da nova Funarte, a professora Valéria Ribeiro Peixoto. Neste livro Mariz afirma que “Mignone foi, talvez, o músico mais completo que possuímos. Compositor, de primeira plana, excelente professor, experimentado regente, virtuoso do piano, acompanhador insuperável, hábil orquestrador, poeta, escritor cheio de verve, tornou-se uma das figuras mais importantes na história da música brasileira. E mais adiante, acrescenta: Talvez tenha sido ele quem melhor manejou a voz no lied nacional.”
Em 1983, a Civilização Brasileira, em convênio com a Funarte, publicou o livro Três Musicólogos Brasileiros: Mário de Andrade, Renato Almeida, Luiz Heitor Correa de Azevedo, em comemoração ao 90º aniversário de Mário de Andrade. Mariz definiu a obra como
«Um esforço de avaliação da obra dos três maiores musicólogos que o Brasil já produziu. Sua atuação foi e está interligada, na medida em que um desenvolveu a obra do outro. Mário engrandeceu a crítica musical, o ensino da música, a estética musical e o estudo do folclore musical. Renato é autor da mais importante história da música brasileira e o institucionalizador da pesquisa folclórica. Luiz Heitor, também musicólogo e folclorista insigne, projetou a música brasileira a nível internacional através do importante cargo que ocupou na UNESCO.»
Em 1994, veio a lume o livro Claudio Santoro pela Editora Civilização Brasileira. Neste livro Mariz afirma que “Cláudio, hoje, pode ser considerado o digno sucessor de Villa-Lobos”.
Nas comemorações pelos 200 anos da chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro, Vasco Mariz foi convidado pela Comissão Nacional encarregada dos eventos, a escrever um livro sobre a música naquele período de 13 anos em que D, João VI permaneceu no Novo Mundo. Mariz foi além. Traçou um verdadeiro mapa sociológico da colônia portuguesa e seus antecedentes musicais e reserva um espaço especial para Sigismund Neukomm, Marcos Portugal e, naturalmente, José Maurício Nunes Garcia.
Mas o legado de Vasco Mariz não se resume apenas aos mais de 50 livros que deixou para a posteridade, sobre música, história, diplomacia e crítica. Em seus cargos da carreira diplomática ele estava sempre pronto a apoiar o artista brasileiro e difundir a sua arte no exterior. Na entrevista que fizemos com ele, referida anteriormente e publicada na Revista Brasileira de Música, em 2011, por ocasião dos seus 90 anos, perguntamos quais tinham sido as principais iniciativas que ele tivera em prol da música e do músico brasileiro ao que ele nos respondeu:
«Na Argentina, no início dos anos 50, promovi vários concertos de música brasileira e lá publiquei um livro em espanhol, um livro coletivo sobre a música clássica brasileira. Fiquei amigo de Alberto Ginastera, o grande rival de Villa Lobos, sobre quem depois escrevi um opúsculo. Na Itália, graças à minha amizade com o diretor do Teatro di San Carlo de Nápoles, consegui que vários cantores brasileiros de passagem cantassem papeis em algumas óperas de diferentes temporadas. Nos Estados Unidos da América, organizei o já referido Festival de Música Inter-Americana e ajudei a muitos intérpretes brasileiros a dar recitais em várias cidades. No Peru, consegui, na rádio principal de Lima, um programa semanal de música brasileira que existe ainda. Obtive do Itamaraty que o saudoso Mario Tavares passasse três meses em Lima para reorganizar a orquestra sinfônica de Lima, no que teve muito sucesso, e depois consegui do presidente Geisel uma condecoração para ele. Em Israel ajudei bastante as apresentações de Arthur Moreira Lima e os conjuntos de Gilberto Gil e Sergio Mendes. Em Berlim, meu último posto diplomático como embaixador, consegui convencer o maestro Kurt Masur, então diretor do Gewandthaus de Leipzig, que a cidade de Bach fizesse uma homenagem a Villa Lobos, autor das Bachianas Brasileiras, no ano do seu centenário, 1987. Foram 4 concertos belíssimos: dois em Leipzig e dois em Berlim.»
No Brasil, Mariz também exerceu sua influência em prol da música brasileira quando exercia alguma função importante. Ele mesmo informa que
«Em 1964, comecei a dirigir a Divisão Cultural do Itamaraty, onde dispunha nada menos de US$400.000 anuais só para a divulgação da música brasileira no exterior, e não era fácil gastar tanto. Mozart de Araújo era o meu auxiliar para a música. Uma das minhas decisões foi fazer com que artistas brasileiros participassem dos principais concursos internacionais de música para marcar a presença do Brasil: pagava-lhes as passagens e uma ajuda de custo para seus gastos durante o certâmen. Um dos beneficiários foi o jovem violonista Turíbio Santos, que venceu o concurso de violão em Paris e lá iniciou sua brilhante carreira. Numerosos artistas fizeram turnês pela América Latina, Europa e Estados Unidos. Por nossa iniciativa e financiamento, importantes orquestras internacionais ofereceram concertos com música brasileira. A carreira de Isaac Karabschevsky começou depois que teve oportunidade de dirigir as orquestras sinfônicas de Praga, Tel Aviv e Amsterdam em apresentações financiadas pelo Itamaraty. Nesse mesmo programa da Divisão Cultural, a peça de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina venceu o concurso de teatro em Nancy e apresentou-se depois com sucesso no Teatro Olympia de Paris. Foi o início da carreira de Chico Buarque.»
Eu também tenho um pleito de gratidão com Vasco Mariz. Tomo a liberdade de citar uma extensa e expressiva carta de recomendação que dele recebi quando me candidatei para estudos de doutorado nos Estados Unidos e que representaram uma radical mudança em minha vida profissional, pelos importantes contatos internacionais que tive. Vasco Mariz assinou a recomendação como Musicólogo, Embaixador do Brasil em Berlim, Membro da Academia Brasileira de Música, Membro do Pen Club do Brasil e Ex-Presidente do Conselho Inter-Americano de Música da OEA. Seu patronato foi fundamental para alcançar meus objetivos. Como eu, inúmeros outros artistas brasileiros foram apoiados por este paladino de nossa música. Uma vez que me permiti a fazer referência a um fato pessoal, me lembro de uma outra passagem que bem mostra seu espírito ao mesmo tempo irônico e paternal. Em 1981 eu estava no Aeroporto Internacional do Galeão, ao lado dos acadêmicos Camargo Guarnieri, José Siqueira e Alice Ribeiro. Nós quatro éramos convidados oficiais do governo da União Soviética para participar do Festival Internacional de Música Contemporânea de Moscou. Todos nós portávamos um visto diplomático de entrada na União Soviética, separado de nossos passaportes, para não comprometê-los, no futuro, junto ao governo brasileiro ou outro governo qualquer, uma vez que estávamos em pleno período da ditadura militar. Na verdade, partiríamos para Moscou, de Lima, Peru. Inesperadamente apareceu no aeroporto a figura de Vasco Mariz, trazendo uns exemplares de sua recém publicada História da Música no Brasil. O entusiasmo do musicólogo era evidente e nós, todos citados em seu livro, fomos os primeiros a tomar conhecimento daquela obra. Eu era o mais jovem do grupo, com um conhecido histórico de oposição ao governo brasileiro do qual Mariz era um prestigioso servidor como Embaixador. Mariz me chamou à parte, e num tom entre paternal e humorístico me advertiu dizendo: “cuidado com o que você vai falar quando chegar a Moscou porque a espionagem vai acompanha-lo a cada passo e em cada palavra que você disser. E mais, nós também vamos ficar o tempo todo de olho em você”. É claro que em Moscou não aconteceu nada disso e que a advertência de Mariz era um misto de seu senso de humor misturado com alguma longínqua verdade.
A par de sua brilhante carreira diplomática, Vasco Mariz atuou à frente de diversas instituições das quais citarei apenas duas. Uma delas foi como presidente do Conselho Interamericano de Música da Organização dos Estados Americanos, CIDEM. Perguntei-lhe qual tinha sido o alcance de sua gestão como presidente do CIDEM ao que ele me respondeu:
«Fui eleito presidente do CIDEM em 1967 por iniciativa de Guillermo Espinosa, chefe da divisão de música da OEA, porque lá cheguei como representante do Brasil no Conselho da OEA e poderia conseguir verbas para o CIDEM. Comecei desconfiado, mas organizamos um belo Festival de Música Inter-Americana em Washington em 1968 e depois presidi uma conferência inter-americana de Educação Musical em Medellin, Colômbia.»
Outro legado de Vasco Mariz foi a sobrevivência da Academia Brasileira de Música. Se hoje estamos aqui nesta bela Sala de Eventos, devemos, em parte, ao seu denodado espírito de luta. Em 1991 a Academia estava com seu patrimônio mal administrado, sem prestação de suas contas e com mais da metade de suas cadeiras acadêmicas vagas. Sua existência plena estava em perigo e só se mantinha a serviço de um único e restrito grupo. Por vários anos não se renovava a Diretoria, com desculpa de que não havia quórum para a eleição. Um movimento de acadêmicos finalmente promoveu eleição para uma nova Diretoria, vencida por Vasco Mariz, na presidência, por 14 votos a três. A diretoria antiga não se conformou e foi à justiça contra a chapa eleita, alegando fraude. Ouçamos as próprias palavras de Vasco Mariz: “A luta judiciária durou dois anos e eu adquiri o mau hábito de visitar o fórum duas ou, até mesmo, três vezes por semana. O esforço valeu, pois o pleito foi julgado sem fundamento. No ínterim, meu mandato como presidente se esgotou e, cansado, preferi não me candidatar às próximas eleições.” Este fato, que pertence à história da Academia Brasileira de Música, mostra o espírito de luta do grande pensador e intelectual que, quando necessário, saia de sua mesa de trabalho para defender as causas mais justas e os bens espirituais nos quais ele acreditava.
Resta frisar que esta resenha é apenas uma seleção das inúmeras ações desenvolvidas por Vasco Mariz, como embaixador por inúmeros países, como membro de importantes entidades honoríficas e culturais, nacionais e internacionais, como autor de muitos outros livros não citados nesta breve memória e, acima de tudo, como um homem culto, cortês, elegante e generoso. Sua trajetória ficou muito fortalecida, depois que se casou, em 1983, com Regina Helena Câmara Mariz, embaixatriz brasileira que sempre o acompanhou e o apoiou em sua vitoriosa carreira, além de representar, com categoria, a mulher brasileira em várias partes do mundo.
Vasco Mariz foi, ao mesmo tempo, um exemplo e um guerreiro. Espelhado neste ilustre confrade, continuaremos lutando para preservar os mesmos ideais pelos quais ele se dedicou durante toda a sua vida. Por isso as suas palavras e as suas ações continuam reverberando nesta Sala.