Entrevista a Vasco Mendonça por António Baião Pinto, a 21 de Fevereiro de 2020, no Verride Palácio Santa Catarina, Lisboa. Assistência técnica e apoio à produção de António de Saldanha. Reportagem fotográfica de Jenniffer Pais. Com agradecimento ao Verride Palácio Santa Catarina e a Joana Delgado.
Excertos da versão a publicar brevemente na revista impressa Glosas n.º 20.
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Como é que foi a sua primeira ida à ópera? Que idade tinha?
Um Così qualquer, longínquo… no São Carlos. A primeira que eu me lembro, e que realmente me desinstalou… porque a ópera nunca foi uma coisa… é sempre um pouco difícil no início, sobretudo porque eu estava ligado ao jazz, e a ópera tem todo aquele excesso, é uma ponte difícil de fazer. A ópera é um espectáculo em que nada é natural. É preciso fazer um exercício de suspension of disbelief, ou seja, nós temos de entrar na sala e acordar, com os autores, e quando nos pacificamos com isso temos acesso a uma das experiências mais extraordinárias da criação humana. A primeira ópera em que eu me lembro de ter sentido alguma coisa de muito especial foi The English Cat do Hans Werner Henze, encenada pelo Luís Miguel Cintra. Foi quando me apercebi de que, na ópera, havia qualquer coisa que era muito deste mundo!
Sei que tem um interesse particular pela descoberta de “novos sons”, até provenientes de matérias inexploradas. Aliás, vem-me logo à memória uma passagem da sua ópera Bosch Beach, a que assisti, no Teatro Maria Matos, em Outubro de 2016. Se bem me recordo, numa das passagens mais orquestrais, durante um “interlúdio”, pediu que os músicos percutissem batendo com os pés no chão do fosso da orquestra… ou falha-me a memória?
Para mim, na composição, naquilo a que me proponho, faz sentido explorar e encontrar novas formas de expressão, novas formas de avançar para algum lado. Avançar para algum lado é, na maior parte dos casos, desagradável. No fundo, muitas vezes procuramos algo que nem temos bem a certeza de que irá resultar. Esse “ir para fora de pé” é conditio sine qua non, pelo menos para mim. Por exemplo, depois da minha experiência com a ópera House Taken Over, que resultou muito bem, não faria sentido estar a seguir a mesma linha, tinha de fazer algo completamente diferente. Em todos os aspectos, Bosch Beach é completamente diferente, seja na estrutura, no tipo de instrumentação, até mesmo o libretto. Uma pesquisa óbvia é a organológica instrumental — porque é que havemos de nos restringir a um léxico, que é o dos instrumentos preparados, para criar o máximo de potência sonora sem ruído? Não é esse o nosso mundo! A dança, por exemplo, se calhar numa linguagem clássica, aspirava a uma noção de beleza quase divina, mas desde coreógrafos como Vaslav Nijinski que falamos do “chão” e não do “céu”… Na música, funciona da mesma maneira: o que é sujo, o que é não preparado ou refinado, pode ser também uma fonte de fascínio e de interesse, e de enriquecimento do discurso. Nesse caso, em particular, o acto de bater no chão, além de ser um acto sonoro, era também um acto teatral. Nesta ópera é clara a oposição de mundos diversos, um de excesso, decadência e quase pornografia, e um outro, quase inarrável, que era o da crise dos refugiados no Mediterrâneo. Uma das coisas que eu pretendi foi, de alguma forma, prestar homenagem, uma vez que era impossível dar voz a essa tragédia que estava diante de nós. Esse gesto era quase um ritual, inicial, antigo, arcaico, mas de reserva, e tinha de ser executado pelos músicos da orquestra, numa tentativa de transmitir algum pudor ao tema em si…
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Falar de música contemporânea é também falar de um preconceito, quer da parte do público, quer mesmo dos programadores — como é que olha para este distanciamento, ou será que algo mudou nos últimos anos?
Penso que é uma situação em que não há inocentes. Temos de fazer um exercício de lucidez em primeiro lugar — o compositor contemporâneo, do ponto de vista social, é uma coisa que não existe, é uma não-entidade! Se compararmos o papel que os compositores têm na vida das cidades, na presença pública, como intelectuais das artes, está mais próximo de um “artesão”, e com isto não quero ser mal interpretado.
Percebo, mas lamento, que os músicos e os compositores, salvo raras excepções, não possam pertencer a este diálogo quase em pé de igualdade. Se perguntar a alguém quem é o Picasso e se essa pessoa não souber, e se perguntar a essa pessoa, no mesmo círculo, e falando até de ambientes letrados, se conhece uma peça do Stravinski e a pessoa disser que não, isso não é olhado da mesma forma. Isto quer dizer que a música não faz parte da nossa vida, do nosso meio cultural e social — e isso vê-se. Agora se há culpa do nosso lado, criadores-compositores, há, eu penso que sim. Mas em nenhum momento a solução para este problema é adoptar uma postura de guerrilha — ou seja, eu sou o “grande artista incompreendido”, subo à minha torre de marfim e vocês são todos uns imbecis que não alcançam a genialidade da criação. Isto é destruidor! Nós precisamos é de colmatar a distância que existe entre as pessoas, precisamos de mostrar que a música contemporânea não é um grupo de pessoas em salas escuras, com o Ulisses do James Joyce debaixo do braço a perorar “intelectualidades”, não! Somos um grupo de artistas exactamente iguais a todos os outros, pintores, escultores, cineastas, que está a reflectir sobre o mundo em que vive! Nós somos deste mundo, não somos do mundo das “casacas” em palco, nós somos artistas contemporâneos. A partilha do que nós fazemos é essencial, se não houver comunicação isso não é possível. Faz parte de um diálogo.
Pessoalmente, eu faço sempre um esforço para neutralizar um certo carácter intimidatório que música contemporânea tem. Já disse isto várias vezes: muitas vezes as pessoas vão ter comigo, depois de assistirem ao meu trabalho, e dizem, “eu não percebo nada de música, mas gostei (ou não gostei)”. As pessoas não sentem a necessidade deste preâmbulo quando vêem um filme, as pessoas assumem o seu gosto, mais ou menos informado, e é nesse universo que nós temos de nos posicionar. Temos de nos afirmar como criadores de qualquer coisa, um pouco diferente, se calhar um pouco mais hermética, que necessita de uma atitude de maior auxílio para mobilizar as pessoas, não num sentido de condescendência, mas de modo a que esta partilha possa acontecer.
Vou dar um exemplo prosaico, mas que até pode fazer sentido: a questão da culinária. Hoje em dia, as pessoas não preparam uma refeição gourmet todos os dias, ou vão a um restaurante e pagam uma quantia alta por algo do género assim com tanta regularidade. Mas, se calhar, se estivermos a falar de uma experiência gastronómica diferente, as pessoas estão, na medida da sua disponibilidade, disponíveis para isso — provavelmente não o fazem todos os dias, mas, de certa forma, é algo que lhes pode deixar memórias gratas. O paradoxo com a música contemporânea, se calhar, não é assim tão descabido: falamos de um género de música que não está presente na nossa rotina, com a qual lidemos assim tão frequentemente, mas, às tantas, quando a vemos e a ouvimos, pode criar um momento especial que enriquece a nossa vida e, eventualmente, levar-nos a procurar coisas diferentes. Como é que isso se faz? Bem…
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Há precisamente seis anos (a 21 de Fevereiro de 2014), disse ao jornal Público que olhava com uma tristeza profunda para o estado do meio cultural português. Mudou alguma coisa desde então, ou continuamos a colar a cultura, e o investimento necessário, a uma lógica económica de proveito a curto prazo?
Eu lamento dizer que, num certo sentido, as coisas não mudaram. Existe um equívoco fundamental entre cultura e indústria criativa que não me parece que se esteja sequer a tentar resolver. Há, no entanto, uma riqueza intrínseca, em determinadas produções culturais e artísticas, que não é uma riqueza monetária. Se nós entramos na discussão da sustentabilidade de todas as expressões artísticas, caminhamos para um beco sem saída. E, consequentemente, cedemos a um exercício retórico que é, muitas vezes, desonesto, embora nem sempre, e enviesado.
Se, porventura, aplicarmos critérios de sustentabilidade económica à ópera, os teatros fecham todos! Nenhuma casa de ópera é financeiramente viável, no caso da Europa continental são os Estados, nos países anglo-saxónicos são os mecenas. Seja privado ou público, tem de haver algum tipo de apoio. Isto é assim porque as pessoas reconhecem a ópera como uma expressão importante e relevante para a nossa cultura, para a nossa civilização. Temos de assumir que há dinheiro que tem de ser dado a fundo perdido; isso não significa que os artistas sejam “parasitas” — e muitas vezes esta é uma ideia veiculada por muito “boa gente”. A situação é absolutamente inversa! A minha experiência é que a classe artística, na sua generalidade, são pessoas com uma dedicação absoluta à causa pública. Eu, quando recebo um subsídio, assumo desde logo que aquele dinheiro não é para mim, trata-se do financiamento que o Estado decidiu que valia a pena gastar com o meu trabalho para servir a causa pública. Eu não tenho a menor dúvida de que a maior parte dos artistas pensa assim.
Nós, artistas, temos o dever de contribuir para uma discussão pública, até civilizacional; o entretenimento é outra coisa… o que não significa que não haja manifestações deste género que não sejam artisticamente relevantes, e o mesmo é dizer que existem produções artísticas economicamente viáveis também. Agora, lá está, entrar nesta discussão é lamentável. Lamento que não haja uma constatação disto por parte da classe política — podem fazer-se muitas declarações de amor à cultura, podemos ser solidários, mas não havendo dinheiro não há milagres.
Nós temos artistas e compositores portugueses verdadeiramente notáveis, belíssimos intérpretes e até instituições como a vossa, o MPMP, com um trabalho importantíssimo — mas existe um limite abaixo do qual, economicamente falando, não é possível produzir com qualidade!
Entrevista completa a publicar brevemente na revista impressa Glosas n.º 20,
no âmbito do 10.º aniversário do MPMP