Pelas cinco da tarde, quando cheguei à Fundação Calouste Gulbenkian, Joana Gama iniciava a oitava hora de Vexations. Dobrava, portanto, a metade da sua performance, prevista para terminar somente às 23h59, numa maratona de 14 horas ao piano. O recital estava inserido no âmbito do Festival Pianomania!, celebrado na Fundação Calouste Gulbenkian entre os dias 12 e 26 de Janeiro.
Vexations, obra póstuma de Erik Satie, é uma peça para piano que, seguindo a estrutura de tema e variações, é composta por um tema melódico repetido a uma voz e duas vozes, explorando dissonâncias e enarmonias. A repetição e o ambiente harmónico conferem à peça a noção de vaguear sem direcção, de inexistência de desenvolvimento, comum a outras obras do compositor. A singularidade da peça encontra-se na indicação, deixada por Satie, para seja executada 840 vezes. Torna-se, assim, um tecido mais intrincado de sonoridades, que vai crescendo à medida que a peça é repetida, e um tour-de-force para o intérprete. A preparação de Joana Gama para a execução de Vexations passou pela desaceleração do metabolismo de forma a adaptar o corpo às horas a tocar ininterruptamente, tendo contado também com o apoio da Unidade de Saúde e Performance da Federação Portuguesa de Futebol. Mas a execução de Vexations exige igualmente um desafio intelectual e interpretativo que implica a boa compreensão da peça, do seu equilíbrio e orgânica, da sua direcção, atenta ao tempo que implica, não para que cada repetição seja única, mas para que o conjunto seja coeso.
No período em que assisti à performance, Joana Gama tocou numa cadência constante e lenta, sem grandes variações de tempo ou dinâmica, que agradou, fosse embora expectável que ao fim de tantas horas a interpretação fosse mais dura ou com mais cambiantes. Usou o pedal apenas por uns instantes e tocou com regularidade que exige concentração e a noção clara da forma da peça. Satie não é estranho a Joana Gama, que, nos últimos anos, se tem dedicado à obra para piano do compositor e que, em 2016, assinalou o 150.º aniversário do seu nascimento com o ciclo Satie.150.
O piano estava colocado na zona de congressos, em espaço aberto e por onde o público podia circular ou parar alguns instantes. Apesar de algum ruído de fundo, de conversas e passos, quem se aproximava do espaço do recital de Joana Gama respeitava o silêncio. Cheguei a contar 50 pessoas a assistir, se bem que pode ter havido momentos com mais público. Detinham-se apenas por uns momentos ou várias horas, sentados nas cadeiras ali dispostas ou nas escadas: alguns adoptavam posições mais confortáveis, estendendo-se no chão; havia quem lesse, quem passasse o olhar pelo telemóvel, quem fizesse crochet, quem dormitasse e quem simplesmente olhasse e ouvisse. À semelhança do tear de Penélope, construído e desconstruído à espera de Ulisses, a peça de Satie, repetida exaustivamente e sem fim aparente, pode ser uma reflexão sobre o tempo, a resistência e a espera – da obra, do pianista e dos próprios ouvintes.
Batiam as 19 horas quando abandonei a performance. À saída, cruzei-me com quem estava então a chegar, e até o dia terminar mais pessoas iriam repetir esses passos. Ao longe, à medida que subia as escadas do foyer, as notas de Erik Satie e Joana Gama vibravam cada vez mais distantes, continuamente. Faltam só mais cinco horas.
Toda a performance foi gravada e transmitida em directo, estando disponível em https://gulbenkian.pt/musica/evento/joana-gama/.
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