Ao ler alguns dos textos existentes sobre a personalidade de José Vianna da Motta – artigos de Jayme Batalha Reis e de Fernando Lopes-Graça, a monografia de João de Freitas Branco, os contributos ao In Memoriam, entre outros – tropecei repetidas vezes nas palavras “clássico” e “homem completo”. Não crendo, nestes casos, na possibilidade de os respectivos autores terem copiadas as passagens um do outro, fiquei com a convicção de que não deve tratar-se de pura coincidência. Queria saber em que sentido os dois conceitos foram usados pelos vários autores.

João de Freitas Branco, no capítulo “O Homem” da sua monografia Viana da Mota, caracteriza o artista como modesto, honesto e humano, exacto, pontual e meticuloso, homem de poucas palavras, que parecia tímido e reservado e que não podia nem gritar nem zangar-se. Pergunta (p. 44): “Não era ele clássico, por natureza e por opção?” Perto do fim do capítulo, mencionando uma mudança da sua maneira de estar durante as férias, Freitas Branco faz uma alusão aos tempos da permanência de Vianna da Motta na Alemanha, perguntando-se (p. 45): “Um Viana da Mota muito outro, muito diferente daquele com quem temos aqui tratado? Alguns depoimentos deixam-no supor […]” Adiante voltaremos a esse ponto.

O conceito do “clássico” aparece, como um leitmotiv, nas mais variadas fontes de caracterizações do Mestre. Vejamos primeiro como outros autores, anteriores a Freitas Branco, o empregam e quais são as conexões e conclusões a tirar daquelas afirmações, para melhor conhecimento do grande artista.

Já em 1896, Antonio Arroyo descreve a sua interpretação pianística com as seguintes palavras: “Classico na fórma, de uma linha purissima e extranhamente sobria para nós, elle é o admiravel interprete de Bach, Beethoven e Liszt que todos festejam”. Na última parte do seu artigo, qualificando a vida artística de Vianna da Motta como sendo “digno de ser tomado como guia por todos quantos teem um ideal de vida qualquer”, evoca ainda o significado “exemplar” para o conceito do “clássico”.

Oito anos mais tarde, Jayme Batalha Reis afirma, com maior eloquência, a opinião de Arroyo relativamente à interpretação pianística: “As qualidades que desde logo impressionam na execução de Vianna da Motta, e depois se lhe notam permanentes, são a clareza, a nitidez, o acabado; o sentimento da proporção, da ponderação no colorido e na expressão; uma sequência sentimental sempre contida, um impulso de paixão sempre dominado.” Todas essas características poderiam servir de definição do “clássico”, no sentido de uma atitude perfeita e equilibrada.

Num artigo originalmente publicado no semanário O Diabo, em Setembro de 1935, Fernando Lopes-Graça fica na mesma linha: “Ora, é esta, justamente, a vitória de Vianna da Motta: o equilíbrio. Ele não é um artista impetuoso, exaltado, sentimental, refinado, romântico; antes sóbrio, ponderado, inteligente, calmo, clássico, no bom sentido da palavra.”

Em 1952 foi editado um livro de homenagem com o título Vianna da Motta: In Memoriam, no qual se encontra, entre muito outros, também um contributo pelo genro do Mestre, o famoso psiquiatra Henrique João de Barahona Fernandes. Demonstra no seu texto como se poderia tirar informações sobre a personalidade do eminente artista, através das coisas que o rodeavam na sua sala de estudo, sentindo ainda um “alevantado sentimento de harmonia e unidade”, e nas representações da sua pessoa em obras de arte. Destaca o baixo-relevo com o seu perfil, de João da Silva: “A impressão dominante era a da seriedade, no sentido mais elevado do conceito. Nada de menos autêntico ou artificial: uma imagem clássica em toda a acepção, por ventura sem beleza física notória, mas com a harmonia e a calma da sua grandeza interior.”

No mesmo livro In Memoriam, o filósofo, sociólogo e político António Sérgio, amigo de Vianna da Motta, salienta um artigo dele publicado em 1917 na revista A Aguia, sob o título O ensino musical em Portugal, que caracteriza como “uma obra clássica”. Continua: “nesse clássico fruto de um clássico espírito, aquilo que sobretudo nos interessa é ver como para além do artista e do músico – e muito clàssicamente – ele visava o ideal a que chamou «o homem completo».”

Chegámos ao conceito do homem completo – conceito, aliás, que Vianna da Motta deve ter tirado de uma obra de Alphonse de Lamartine ou do vocabulário do seu amigo Batalha Reis. Numa carta dele a Vianna da Motta, de 2 de Agosto de 1904, queixando-se de que este não tinha respondido minuciosamente a uma carta anterior sobre a sua filosofia, escreve: “Julguei comprehender que Você toma a serio estas coisas e deseja, – como homem completo que é, – ter uma idea tambem completa do seu Espirito e do Universo, – uma Filosofia.” E num artigo sobre Vianna da Motta publicado no Diário de Notícias, em 8 de Junho de 1908, lê-se: “É sem duvida «pianistas» o que elle se propõe formar; mas as necessidades do seu espirito, e os processos que, por isso, muito naturalmente emprega, tendem a crear completos homens artistas, na mais larga acepção d’estas duas palavras.”

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Excerto de texto publicado na Glosas 17. A revista pode ser adquirida na Loja MPMP.