Em inícios de 2016 deparei com uma manchete do Jornal de Letras e das Artes que me deixou verdadeiramente entusiasmado: “a edição em Portugal”.1 Sendo eu assinante, recebia os exemplares por correio postal, pelo que assim que pus a mão neste número tratei rapidamente de o abrir e folhear na curiosidade de saber o que tinha sido dedicado à edição fonográfica, quem tinha sido convidado a escrever sobre isso e o que dizia. Estávamos em Janeiro, e já estava frio, e para mim ainda mais frio ficou. Esperava, naturalmente, que houvesse uma preponderância da edição literária, mas, não havendo em Portugal muitos periódicos que se dediquem especificamente à cultura e às artes, e sendo este um tema raramente abordado, a minha ingenuidade levou-me a acreditar que o Jornal que trata de Letras, mas também das Artes, teria dedicado algum espaço, mesmo que reduzido, ao caso da edição fonográfica. Enganei-me! A “edição em Portugal” era, unicamente, a edição literária. Nem uma pequena coluna, uma caixa, um parágrafo em segundo plano, dedicado ao “mercado do disco”. Não está aqui em causa a acção, de grande mérito, do Jornal de Letras e das Artes, que muito estimo. Está antes em questão o facto de já se ter generalizado entre nós de tal forma o confinamento de “edição” ao domínio da literatura, que se tornou natural, para todos aqueles externos ao meio da edição fonográfica, essa mesma delimitação. Este é um aspecto bem revelador do espaço e relevância que este tipo de edição assume entre a esmagadora maioria da nossa sociedade, desde as chefias e entidades responsáveis pelo sector cultural até ao público generalista, e (sejamos claros!) sempre assim foi. Os casos de excepção foram assinados por aqueles produtores, técnicos e artistas que foram directamente responsáveis por grande parte da nossa história da produção e edição fonográfica, também partilhada por um público melómano relativamente restrito, no passado e no presente. Na verdade, hoje em dia, mais do que nunca, produzir e editar um disco é um acto de coragem.

Ao longo da última década, o sector da produção discográfica de música erudita em Portugal tem mantido uma faceta que é comum a toda a história da edição fonográfica a título mundial: a constante transformação e reconfiguração. Essa característica de mutação e alguma inconsistência é uma das poucas que, paradoxalmente, se mantém transversal a todos os mercados (de maior ou menor expressão nacional ou internacional) dentro desta área. Quase se pode sugerir que a marca de água da indústria fonográfica é a constante instabilidade, ou uma estabilidade inconstante. Nesse sentido, a biografia da produção e edição fonográfica desenvolveu-se num percurso de cerca de 120 anos repleto de avanços e recuos. Os primeiros, suscitados pelo desenvolvimento tecnológico (o microfone e a gravação eléctrica, o stereo, a fita magnética, a gravação digital, a distribuição via internet, etc.), e os recuos, impostos pelos grandes acontecimentos sociais do século passado.

À escala nacional, um dos acontecimentos sociais preponderantes para a indústria fonográfica de música erudita foi a revolução de 25 de Abril de 1974, uma vez que só a partir daí se verificou um interesse por parte do Estado no mercado fonográfico de música erudita, tímido e de proporções variáveis consoante diferentes momentos ao longo das últimas cinco décadas, ao mesmo tempo que se desenvolveu um mercado de produção fonográfica de música erudita inteiramente nacional. Até aí a produção portuguesa de música erudita contava com um percurso de cerca de 15 anos2, em que grande parte da edição era feita em catálogos de companhias estrangeiras, com representantes locais em Portugal, como a Valentim de Carvalho. A partir de 1974, assiste-se a um trajecto de constante crescimento, sobretudo no que se refere ao número de novas edições, e a uma mudança constante praticamente a cada década.

Entre 1974 e 1985, dá-se o desenvolvimento de um mercado inteiramente português de produção e edição, centrado em catálogos locais, principalmente A Voz do Dono da Valentim de Carvalho, a Discoteca Básica Nacional (criada em 1977 e rebaptizada em 1986 de PortugalSom), e o interesse de editoras generalistas (Orfeu, Sassetti, Tecla, entre outras). Nos últimos quinze anos do século XX, fruto de uma maior integração de Portugal no contexto europeu, as principais majors internacionais (BMG-RCA, Sony, Polygram-Philips) estabelecem departamentos no nosso país, ao mesmo tempo que se dá a emergência de novas editoras independentes (Movieplay Classics, Strauss, Numérica) capazes de discutir esse mesmo mercado com as majors, verificando-se um consequente aumento exponencial na produção de novas edições. Na primeira década do século XXI, as majors deixam de explorar este mercado, tornando-se um sector quase exclusivo de indies e etiquetas com pequenos catálogos (Portugaler, Capella, Fine Arts, Althum, Resonare Records, etc.), que se vêm confrontadas com a crescente concorrência de companhias estrangeiras e, sobretudo a partir de 1998, perante uma reconfiguração das dinâmicas deste mercado — o surgimento de novas plataformas digitais e a circulação online de ficheiros (muitas vezes por via de partilha e reprodução ilegal) —, a consequente queda de receitas a partir do mercado de revenda de fonogramas e a retração do investimento privado face à crise de 2008, entre outros factores3.

Desta feita, há cerca de dez anos iniciou-se um processo de gradual distanciação entre a indústria editorial e o mercado de produção, onde as entidades editoras consistem em projectos de natureza muito diversa, de pequenas proporções, a partir da actividade de uma única pessoa — produtor e (ou) artista — ou de um núcleo muito reduzido de colaboradores. As grandes companhias independentes acabaram por desaparecer, como a Strauss e a Movieplay Classics, esta última a principal concorrente das majors na última década do século XX4. A Numérica foi a editora com maior volume de títulos de música erudita na primeira década do século XXI, incluindo o catálogo da PortugalSom (que editou entre 2005 e 2012), mas também acabaria por encerrar em 2015.

Estamos, pois, no final de uma década em que se verificaram novas alterações neste sector, que acabam por se repercutir numa renovação das entidades editoras (novos formatos dominantes) e dos intervenientes produtores (novas gerações). Praticamente todos os catálogos específicos de música erudita criados no século passado acabaram por cessar actividade antes de 2010, e o único que se mantém até aos nossos dias é a Miso Records (fundado em 1988 por Miguel Azguime e Paula Azguime). Podemos, também, juntar aqui a editora Tradisom, criada por José Moças em 1992, que apesar de editar esporadicamente alguns títulos dentro deste repertório, não se concentra nesse domínio como foco principal. Além destas, tirando casos residuais de edições publicadas nos catálogos das majors activas em Portugal5 ou no crescente número de gravações levadas a cabo no nosso país por equipas de produção independentes e posteriormente editadas em catálogos estrangeiros (Naxos, Grand Piano, Toccata Classics, Odradek, Brilliant, Pan Classics, Paraty, Hypérion, etc.), as restantes editoras e etiquetas que têm dinamizado o mercado português na última década foram já criadas no século XXI. Isso demonstra um mercado editorial extremamente volátil, que não se pode identificar sequer como uma indústria, e que não está necessariamente associado ao mercado de produção (gravação, e realização de master), mantendo-se este último independente, para edição interna ou externa.

Assim, a tendência que se iniciou na primeira década do nosso século e se intensificou ao longo dos últimos dez anos é a coexistência de diferentes catálogos de pequenas proporções, independentemente do respectivo grau de maior ou menor qualidade artística e editorial, e com tiragens também relativamente reduzidas que, por norma, rondam actualmente entre as 500 (ou menos) e 1500 unidades. São etiquetas especificamente criadas para o mercado de música erudita e, por vezes, concentradas em nichos de repertório. Verifica-se, desde sempre, um interesse predominante pela gravação de repertório nacional, preferencialmente inédito, que reflecte uma lógica de catálogo, responde a uma necessidade de preservação patrimonial, mas também é um forte argumento comercial diferenciador do ponto de vista da oferta de conteúdos de música erudita gravada, tanto para uma grande parte das edições nacionais, como de gravações portuguesas editadas por companhias internacionais.

As etiquetas nacionais activas na última década têm sido formadas a partir de diferentes enquadramentos: no seio de empresas independentes; integradas em associações ou entidades corporativas; projectos editoriais criados pelos próprios artistas. As edições de autor têm vindo a ser uma alternativa mais frequente na última década. No entanto, parece haver ainda algum cepticismo por parte da crítica, bem como por parte dos próprios músicos, em relação a essa opção. A edição numa etiqueta discográfica continua a ser vista como um selo de garantia e qualidade promocional (que muitas vezes sai gorada). Há, aliás, uma grande quantidade de revistas de referência internacionais e plataformas online de crítica discográfica que não consideram edições de autor sem uma associação a uma etiqueta, editora ou distribuidora. Para os músicos, a escolha está maioritariamente dependente da vontade de controlo de todo o processo e (ou) independência que o artista pretenda, ou não, assegurar, a par com a capacidade de visibilidade e eficiência da distribuição, uma vez que as diferenças entre os custos de produção e receitas de vendas de uma edição de autor ou a cargo de uma editora não são muito diferentes.

Texto completo publicado na Glosa nº 20, p. 23-29.

Sobre o autor

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Produtor e musicólogo, é investigador do INET-md na Universidade Nova de Lisboa (UNL) e doutorando em Musicologia Histórica sob a orientação de Rui Vieira Nery. É Mestre em Musicologia Histórica desde 2010 pela UNL onde cursou sob a orientação de David Cranmer. É autor de várias publicações, destacando-se a edição "Espólio Manuel Ivo Cruz: Música Manuscrita Portuguesa e Brasileira" (UCE-Porto, 2013) e “Joaquim Simões da Hora: Intérprete, Pedagogo e Divulgador” (Edições Colibri, 2015). É membro associado da AEAA – Association Européenne des Agents Artistiques desde 2014. Assinou a produção discográfica de discos para editoras como a Grand Piano (Naxos), Arkhé Music, Artway Records e Portugaler.