Introdução ao livro por António Pinho Vargas

Este livro decorre da dissertação de Doutoramento em Sociologia da Cultura, apresentada na Universidade de Coimbra, e centra-se essencialmente na análise do carácter subalterno da música portuguesa de tradição erudita no contexto europeu. O facto empírico em si – a ausência, a subalternidade – não carecia de investigação. Faz parte daquilo que é geralmente aceite como verdadeiro e, nesse sentido, não seria necessário levar a cabo uma investigação para comprovar aquilo que já se sabe, embora não seja propriamente do conhecimento comum nem a extensão nem o grau que a ausência atinge. Pude verificar casos de grande desconhecimento sobre o assunto, dado o carácter de pequena tribo isolada que constitui o meio musical português. No entanto, as abordagens do problema que existem circunscreveram-se, na maior parte dos casos, à constatação do facto e a várias formas de lamento ou protesto sobre a invisibilidade. Para além de um estabelecimento documentado dos dados da ausência, tratava-se antes de levantar novas hipóteses sobre os mecanismos que a produzem, sobre os discursos que a reproduzem e, acima de tudo, sobre as relações de poder de âmbito transnacional que a sustentam.

Tendo em conta, de acordo com Quivy, a importância da ruptura, que consiste precisamente em romper com os preconceitos e as falsas evidências, considera-se, nesse sentido, e seguindo o mesmo autor, que “essa ruptura só pode ser efectuada a partir de um sistema conceptual organizado, susceptível de exprimir a lógica que o investigador supõe estar na base do fenómeno” (Quivy e Campenhoudt, 2003). Essa parte do trabalho, construir um sistema conceptual, constitui os seis primeiros capítulos.

A problemática que nos propusemos investigar e analisar – a ausência da música portuguesa erudita no contexto europeu – transporta consigo todo um discurso lamentoso, que, aliás, e como veremos, não é de modo nenhum exclusivo do campo musical, mas comum às diversas artes e, de certo modo, à cultura portuguesa no seu todo. Importava, por isso, em primeiro lugar, descrever e interpretar esses discursos, detectar os seus vários matizes, tentando avançar para uma outra espécie de questionamento mais amplo, capaz de vir a produzir outro tipo de resposta. Aquilo que Quivy designa como preconceito e como falsa evidência consiste, neste caso, num conjunto de ideias feitas, num discurso recorrente que, não obstante ter a sua base e o seu fundamento inscritos na realidade, não parecia capaz de fornecer uma análise nova, eventualmente mais profunda, da problemática antiga. Para tentar chegar a tal desígnio, o passo fundamental, de facto, consistia na organização de um sistema conceptual muito diverso do usual na musicologia tradicional e mesmo nas outras ciências sociais e humanas instituídas.

Esta temática está presente de várias formas nos textos dedicados à História da Música Portuguesa, em declarações de compositores, em entrevistas feitas a músicos tanto portugueses como estrangeiros, em declarações programáticas de instituições e ainda nas intenções inscritas nos programas dos sucessivos governos sob o lema da internacionalização da cultura portuguesa abarcando-a no seu todo. No entanto, apesar e para além destes enunciados gerais, parecia-me que os discursos sobre essa ausência, sobre essas dificuldades nunca vencidas, não forneciam todas as respostas possíveis a uma problemática com algumas zonas de obscuridade que desafiavam o desejo analítico.

O objectivo era então ensaiar um estudo amplo do problema em articulação tanto com as visões internas da questão, muitas vezes inseridas em visões globais das relações de Portugal com a Europa, ou seja, com a sua posição geocultural em relação aos países centrais da Europa, como igualmente em articulação com o próprio modo de funcionamento do campo musical da música europeia de tradição erudita que interessava precisar. Uma das maiores dificuldades da abordagem desta problemática radicava na própria noção corrente da música como “linguagem universal”, facto que, a ser verdadeiro, lançava uma maior perplexidade sobre o assunto. Seria a música portuguesa, na verdade, uma expressão artística inferior? Seria na sua falta de qualidade genérica que residiria a explicação para o facto de nenhuma peça portuguesa ter alguma vez integrado o cânone musical europeu ou, mais simplesmente, ter sido alguma vez cooptada pelo reportório corrente das salas de concertos do mundo ocidental, ou das partes do mundo onde a tradição da música “clássica”, como é vulgarmente designada, está presente regularmente?

Esta hipótese, que creio ser perfilhada, à partida, por aqueles que exprimem quotidianamente o complexo de inferioridade dos portugueses ou defendem a existência de um atraso irrecuperável de Portugal de praticamente todos os pontos de vista não me parecia suficientemente afastada dos lugares-comuns aceites e não interrogados para poder ser considerada – excepto igualmente como objecto de análise – num trabalho de carácter científico. Este tipo de discurso exprime-se muitas vezes de um modo surdo e só por vezes assume a forma escrita tal como sucedeu em grande escala, por exemplo, no século XIX e em certos momentos do século XX.

No entanto, talvez o facto de eu próprio ser músico e compositor me impedisse de aceitar, de ânimo leve, uma explicação que atribuía, com a segurança antecipada que as ideias feitas sempre conferem, o estatuto de inferior ou subalterno não só a tudo aquilo que já foi feito, como àquilo que ainda está por fazer. Nesse sentido, esta explicação aproximava-se de uma condenação, de uma fatalidade, de um destino ao qual não seria possível escapar. Gradualmente foi-se tornando uma evidência que os factores que eu tinha começado por sentir individual e subjectivamente como artista afectavam toda uma comunidade de artistas e, assim sendo, era imperativo ir mais além no questionamento das suas razões profundas.

Nesse sentido emergia uma pergunta fundamental: quem declarava essa presumível falta de qualidade, essa inferioridade atávica, essa irrelevância insuperável? Qual foi o Grande Júri que, ao longo dos séculos, decidiu o que incluir e o que excluir? Ou, ainda com mais propriedade, qual é o Grande Juiz que, ainda hoje, continua a deter o poder de o declarar?

A procura de uma resposta plausível a estas questões obrigava, por si só, a lançar vários tipos de suspeitas e novas interrogações. Qual é a forma que reveste o funcionamento do campo musical ocidental? De que forma se constituiu historicamente o cânone musical? Que estruturas institucionais, que conjuntos de valores interiorizados produzem e reproduzem determinadas formas de regulação da vida musical na Europa, no mundo ocidental e em Portugal?

O facto de se estar perante uma questão que envolvia, com toda a probabilidade, relações de poder, tanto no interior de campos nacionais como nas relações culturais transnacionais, mas também ideologias, no sentido que Luc Boltanski dá ao termo, ou seja, “um conjunto de crenças partilhadas, inscritas nas instituições, comprometidas nas acções e, por isso, ancoradas no real” (Boltanski e Chiapello, 1999) obrigava a um esforço teórico de problematização muito para além dos recursos habituais usados na musicologia tradicional, ela própria, de resto, já debaixo de críticas, suspeições e revisões levadas a cabo especialmente nos países de língua inglesa desde as últimas duas décadas do século findo.

Para além disso, parecia-me importante proceder a uma investigação empírica suficientemente exaustiva que permitisse estabelecer qual era a real dimensão da ausência nos textos considerados de referência no campo musical, particularmente considerando que, a partir do ano 2000, foram sendo publicadas várias Histórias da Música do Século XX que pretendiam colocar-se num ponto de observação já privilegiado pelo facto de o século ter terminado.

Qual era realmente a presença/ausência da música portuguesa nas Histórias da Música publicadas nas línguas da Europa central – inglês, francês, alemão1 – e de que forma se colocavam, face a esta problemática, as próprias narrativas sobre a História da Música Portuguesa? Que tipo de discursos eram produzidos sobre música portuguesa e, em particular, qual era a abordagem dos musicólogos portugueses e dos agentes activos na programação das instituições culturais em relação à subalternidade da música que, supostamente, deveriam estudar, apoiar e programar?

A partir destas várias perguntas fui construindo o meu objecto de investigação e, simultaneamente, a teoria ou o conjunto de conceitos teóricos de várias proveniências capazes de melhor fornecer hipóteses explicativas, interpretações e respostas mais sólidas do que as ideias feitas que uma espécie de senso comum interiorizado e sobretudo naturalizado nos próprios agentes da vida musical foi fornecendo 2.

1 Os textos publicados em língua alemã não têm impacto directo em Portugal excepto quando existem traduções. Por isso, neste trabalho só esses serão considerados, com excepção da mera verificação das entradas na enciclopédia Musik Geschiste und Gegenwart, dada a sua importância simbólica.

2 Se me é permitido um conselho ao leitor, proponho que não se deixe cair na tentação de passar por cima das páginas das duas primeiras partes e avançar imediatamente para a Parte III que trata a problemática do campo musical português. Esse salto corresponde a “uma nefasta e mórbida curiosidade” ligada à dificuldade para distinguir aquilo que é uma análise e não uma crítica. A parte teórica, aliás com muitas referências à temática central, não foi escrita apenas para preencher os requisitos de cientificidade, mas constitui em si a chave para fazer uma tal distinção.

Texto originalmente publicado na Glosas 3, 2011, p.72-73.