Helena Sá e Costa. Fotobiografia. Coordenação de Helena Costa Araújo e Henrique Luís Gomes de Araújo.
Edições Afrontamento: Porto, 2023.
O objeto desta recensão é uma obra de grande âmbito, um produto da maior ambição. O projeto teve apoios da Câmara Municipal do Porto, da Câmara Municipal da Maia, da Fundação Calouste Gulbenkian, da Fundção Eng.º António de Almeida e da Associação Comercial do Porto. Assim sendo, o resultado foi extraordinário: trata-se de um livro de 400 páginas, com centenas de fotografias e um peso de 2,3kg. É composto de 17 capítulos, escritos por 16 autoras e autores (com o uso dos dois géneros sigo os exemplos da Introdução e do 7.º capítulo) e organizados de maneira a conseguir um equilíbrio entre cronologia e assuntos temáticos. Os tópicos abrangem o ambiente familiar e a formação de Helena Sá e Costa, as suas atividades como pianista, professora e membro de júris e as suas funções dirigentes no Orpheon Portuense e na Escola Superior de Música do Porto. Um anexo inclui bibliografias de dois capítulos (um deles, curiosamente sob um título diferente do do texto principal), publicações e discografia de Helena Sá e Costa, uma biografia sumária, novamente ilustrada, e um índice onomástico. O único desiderato seria uma bibliografia geral em torno dos temas da biografia.
No prefácio da obra, Rui Vieira Nery aborda o ambiente musical, com respeito à vida social e às possibilidades de formação, em que Helena Sá e Costa nasceu, e a tradição pedagógica e musical familiar — uma tradição específica do Porto, em que, ao contrário da de Lisboa, a música germânica com os seus conceitos ideais teve uma posição de primazia. Esta tradição influenciou, se é que não determinou, a evolução humana e profissional de Helena Sá e Costa.
Segue-se a Introdução, pelos coordenadores do livro, cuja primeira parte visa chamar a atenção das leitoras e dos leitores para os objetivos principais desta biografia, dos quais são de salientar o de manter um equilíbrio entre o apelativo e o científico e o de identificar os acontecimentos que «marcaram a vida» da artista biografada. O primeiro destes objetivos foi conseguido, sem dúvida. No que diz respeito ao segundo, nem todos os exemplos são convincentes. Nomeadamente os concertos e recitais nos Estados Unidos da América não parecem à autora desta recensão ter sido de tão grande relevância na carreira de Helena Sá e Costa. Mas existe algum livro de interesse cujo conteúdo seja indiscutível?
Henrique Luís Gomes de Araújo, autor do primeiro capítulo, intitulado «Helena Sá e Costa: Os contextos e os ciclos de vida», vê na pianista biografada uma «dupla persona — a artista e a humana» e tenta iluminar o mistério do seu ser através de uma série de fotografias da sua vida entre a primeira comunhão, em 1925, e o 92.º aniversário, em 2005, interpretando nelas os seus olhares e atitudes. As fotos que se seguem ilustram as suas ações profissionais, evocando também elas o mistério que emana da artista.
O segundo capítulo foca-se nos «primeiros anos de encantamento e formação musical», estendendo-se desde o nascimento até à formação com os pais e com José Vianna da Motta e aos primeiros concertos, e elucidando o meio familiar.
No terceiro capítulo, «Mestres e formação fora de Portugal», contrariamente ao que se verifica no anterior, é dada importância a detalhes das várias técnicas e interpretações que a jovem pianista observou nos seus professores, o que transmite também a leitores menos familiarizados com Helena Sá e Costa uma ideia da seriedade da sua musicalidade e dos fundamentos da sua técnica. Excertos de cartas dirigidas à família revelam diferenças interessantes entre os cursos de Edwin Fischer, Wilhelm Kempff e Conrad Hansen. É pena que os textos contenham vários erros ortográficos em nomes (p. ex., Furtwangler, em vez de Furtwängler — também no índice onomástico) e citações em alemão, o que num dos casos resulta numa tradução engraçada pelo autor deste capítulo: «Sim, sim — os pianistas ficarão felizes por haver alguns companheiros nele [no disco com a gravação dum concerto]…», em vez de «haver alguns erros nele» (página 70 do livro).
É espantoso observar como os pais deixaram viajar sozinhas as duas irmãs (Helena e a violoncelista Madalena), ainda tão jovens (23 e 20 anos, respetivamente), para a Alemanha, a fim de aperfeiçoarem as suas capacidades instrumentais, deixando-as participar em cursos que lhes devem ter custado uma pequena fortuna. Assim, a jovem pianista desenvolveu também uma autoconfiança e independência intelectual e social que eram tudo menos normais naquela época e que lhe permitiram mais tarde ocupar posições profissionais em que as mulheres ainda eram raras.
Os resultados desta formação, tantas vezes aplaudidos, refletem-se também nas suas atividades como professora, que são abordadas no quarto capítulo, «Apontamentos sobre o pensamento pedagógico». Os ditos apontamentos manifestam a diversidade das ideias, exigências e observações da professora relativamente às suas alunas ou aos seus alunos e ao ensino em geral, que vão muito além de questões de técnica e do pensamento musical.
As atividades pedagógicas têm nesta biografia uma importância igual à da carreira no palco. Quatro capítulos tratam dos cursos de verão em Cascais e Estoril, Salzburgo, Gunsbach (Alsácia), Espinho, e noutros lugares em Portugal, Itália e na Alemanha, e do Festival de Música em Guimarães, nos quais Helena Sá e Costa colaborou como professora. E em outros quatro capítulos é exposta a carreira internacional da pianista. O terceiro pilar profissional da artista é de carácter mais funcional: durante meio século, Helena Sá e Costa integrou júris de concursos musicais, foi Diretora Artística do Orpheon Portuense, como sucessora de seu pai, Luiz Costa, e Presidente da Comissão Instaladora e do Conselho Científico da Escola Superior de Música do Porto. A estas atividades são dedicados três capítulos.
O encerramento e ponto culminante da biografia é um capítulo sobre «Celebrações em torno de Helena Sá e Costa». Mais de setenta prémios, condecorações, eventos e obras de homenagem, já em vida, foram atribuídos ou realizados por instituições e admiradores em Portugal, Itália, Espanha e nos Estados Unidos da América. É impressionante a apresentação destas homenagens. Porém, parece um tanto déplacée a indignação do autor deste capítulo sobre o facto de certas instituições não terem contribuído nada para a já longa série de provas de mérito.
Seguem-se ainda textos pessoais de testemunhos da convivência com Helena Costa — alunas e alunos, colegas músicos e outras personalidades ligadas à cultura.
A fotobiografia ilumina todas as facetas da vida de Helena Sá e Costa comunicáveis ao público, e a sua composição por textos das mais diversas autoras e autores é bem sucedida. A rica ilustração faz do livro uma verdadeira jóia dentro do seu género. São inevitáveis algumas repetições, já que a obra é organizada em parte cronologicamente e em parte por assuntos temáticos. Mas este facto não incomoda, sublinha antes a importância de certos conteúdos. Observa-se com satisfação como, nas primeiras décadas do século XX, uma mulher pôde seguir desde jovem a sua vocação e ser pianista profissional e como mais tarde foi aceite e eleita para presidir a importantes instituições culturais — uma mulher que, além do mais, sempre manteve a atitude de dama. É um livro que, além de ser muito informativo, anima e dá prazer.
Fotografia: Teófilo Rego, 1950
Texto publicado na Glosas n.º 23, p. 152-159.
