Entrevista a Manuela Encarnação
A Associação Portuguesa de Educação Musical completa, neste ano de 2022, 50 anos de existência.A entrevista que se segue serve um gesto de homenagem mais que merecido.
Ao longo deste meio século, a APEM, uma associação sem fins lucrativos e de utilidade pública, desenvolveu e aperfeiçoou a educação musical nacional, tanto numa perspectiva de formação social e humana, quanto numa vertente mais especializada. Encontrámo-nos com Manuela Encarnação, Presidente da APEM desde 2016, com quem partilhámos um belo serão nos Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian — que, aliás, apoia a associação que agora celebramos —, para uma pequena conversa.
Celebramos hoje o cinquentenário da APEM, marco indissociável da brilhante orientação que o permitiu. Comecemos, então, por si. Como é que o seu caminho se cruzou com o da associação à qual se dedica, permitindo que, em 2016, se tornasse presidente? O que a motiva neste caminho? Eu nunca esperei vir a estar na Presidência da Direcção da APEM. Mas, de facto, o meu caminho profissional cruzou-se e funde-se com o da APEM. Eu sempre quis ser professora e nos primeiros anos em que comecei a dar aulas não havia tanta oferta formativa para professores. A APEM foi a instituição que encontrei para me dar alguma formação pedagógica e também científica. Cruzei-me com a APEM logo em 1979 e fiz um curso com a professora Maria de Lourdes Martins, que foi algo extraordinário: abriu-me “janelas”! Ela introduziu o método Orff em Portugal e esse foi um primeiro curso intensivo para professores, pelo que estivemos uma semana imersos nos princípios Orff, a experimentar, a fazer, a improvisar… Para mim, aquilo foi um abrir completo de princípios, de metodologias… Foi fantástico! De maneira que, a partir daí, o meu caminho foi sempre perto da APEM. Depois fui convidada a pertencer à Direcção, logo nessa altura, à qual voltei depois de uns anos de interregno, já em 2006, na equipa com a Graça Palheiros, pelo que já estou na Direcção há imenso tempo. Depois as pessoas foram fazendo outros caminhos e fiquei eu… Foi porque tinha de ser. Mas a minha visão em relação à Direcção da APEM é que funcione como uma equipa — e eu tenho a sorte de ter um grupo de colegas espectacular. Todos vestiram todas as camisolas possíveis e imaginárias… e trabalhar assim é muito mais fácil. É bom todos os dias. É criativo todos os dias. É um trabalho que se faz com gosto nas suas várias vertentes e nas nossas várias competências.
Curioso é então perceber que o seu primeiro contacto com a APEM surge de uma formação com a primeira presidente, Maria de Lourdes Martins, que criou, em 2009, um Centro de Formação (CFAPEM) propriamente dito. Qual a importância da formação para a APEM? Qual a sua memória desses primeiros contactos? Sim, foi bastante mais tarde, mas foi isso. Nós só criámos o centro, em 2009, por motivos formais, porque formação contínua era o que a APEM já fazia. Seminários, cursos, simpósios, encontros… tudo isso era formação com professores portugueses e estrangeiros, de diversas áreas. Mas quando, em 1992, se estabiliza a formação contínua de professores, houve a necessidade de criação de um centro, uma instituição creditada pelo Conselho Científico da Formação Contínua da Universidade do Minho, dada a ligação entre a formação contínua e a progressão na carreira. Portanto, tivemos de juntar as duas coisas e criar formação creditada, apesar de já o fazermos há muito mais tempo e sempre com muita qualidade. Quanto à Maria de Lourdes Martins, eu acho que ela foi visionária e irrequieta. Eu era muito nova quando a conheci, mas percebi logo o entusiasmo e o facto dela criar esta associação fez com que juntasse uma comunidade de músicos e professores que não existia até à altura. Isto foi mesmo antes do 25 de Abril, o que poderia ter sido complicado. Foi um abrir de “janelas” para a comunidade de música em Portugal, para os professores e investigadores, trazendo nomes de referência e realizando cursos com crianças, para se mostrar aos professores o trabalho com as crianças, directamente. Foi isto que criou a dinâmica que fundou a APEM.
Tanto as formações da APEM como o Encontro Nacional, que se realiza ano após ano, se destinam a professores e investigadores enquadrados tanto no ensino regular quanto no artístico profissionalizante. Porquê? Tem de haver uma visão de que a música não está divorciada de todos os aspectos da nossa vida. A música tem várias funções, dependendo dos contextos em que se faz, se ouve, se pratica, pelo que esta visão mais global e integradora da música é, de facto, o paradigma com que trabalhamos. Desejamos articular o Ensino Geral e o Especializado, mesmo sendo perspectivas diferentes, em termos evolutivos, por serem áreas que não devem estar de costas voltadas ou desligadas. Os princípios em si, de como se aprende música, são os mesmos. É da mesma forma que se aprende.
Este sentimento de mutualidade é também sentido na reflexão e partilha entre pares nacionais, mas também fora de Portugal, já que a APEM se encontra em redes que fomentam a compreensão e cooperação entre os vários países e respectivas culturas. Quais as grandes vantagens da APEM estar filiada a organizações internacionais como a International Society for Music Education (ISME)? Foi a Maria de Lourdes Martins que trouxe a ISME para Portugal, que foi evoluindo ao longo dos tempos, naturalmente. Mas existem mais instituições. A APEM faz parte também do European Association for Music in School (EAS), uma instituição europeia com trabalho muito interessante para as escolas e para o desenvolvimento das práticas musicais nas escolas. Também fazemos parte de um outro grupo, o Music Education Policy Group (MEP Group), criado em 2019, tendo sido a APEM convidada, que junta um conjunto de pessoas que pensam sobre política para a música na educação. E tem sido um privilégio para nós podermos acompanhar estes movimentos, com pessoas fantásticas do mundo da música, desde a América do Sul do Norte, Inglaterra, Canadá… Pessoas com várias personalidades, já com histórico muito grande no mundo da investigação. Estão a criar-se grupos de trabalho muito interessantes.
Mais regulares que estes Encontros Nacionais são a newsletter mensal e o podcast “À mesa não se canta”, disponibilizado no primeiro domingo de cada mês e conduzido pela nossa entrevistada, em conjunto com Eduardo Lopes. O par problematiza o próprio mote que dá nome a este novo formato de comunicação, tão em voga nos dias de hoje. Através desta iniciativa, é-nos permitido conhecer melhor uma série de personalidades, que por lá partilham diferentes percursos na música, bem como visões únicas sobre a educação musical. Ainda assim, demarca-se uma tendência convergente à implementação do Conceito de Educação Kodály em Portugal pela APEM, materializado pelo seu Centro Kodály de Portugal (CKP), instituição que visa difundir o conceito de Educação Musical do compositor, etnomusicólogo, pedagogo e linguista húngaro que lhe dá o nome. Esta visão educacional distingue-se por assentar num canto e prática coral que funde práticas tradicionais e eruditas, potencializando ambas as vertentes, das quais se retiram diferentes processos de aprendizagem optimizados. Por conseguinte, o projecto partilha com a APEM o objectivo de expandir a literacia musical da população, a par da valorização da língua materna e cultura musical própria de cada país, embora se admita a importância do conhecimento mútuo entre as várias culturas.
Por que razão considera a APEM que o repertório tradicional nacional (ou música composta a partir deste repertório) é o mais adequado num caminho de iniciação? Em relação à música tradicional, de onde partiu sempre o conceito Kodály de educação, mantemos a ideia de partir do património do país, de manter e trabalhar as melodias e canções tradicionais, dá-las e conhecer e pô-las ao serviço do ensino da música. Partimos daquilo que, em princípio, é mais conhecido, e com o que mais nos ligamos, pelas suas características culturais, de prática e até de musicalidade. O que nós fizemos com o projecto “Cantar Mais”, que é um marco grande da nossa actividade; foi precisamente trazer canções do repertório tradicional português, mas dar-lhes outras “vestimentas”, outros arranjos, para que as crianças se sintam mais motivadas para as cantar, para as ouvir, e poder, a partir daí, ligá-las a outros contextos musicais.
Este impulsionar socio-cultural e preservar patrimonial surge, com efeito, no projecto coordenado por Carlos Gomes e Gilberto Costa: TER voz, DAR voz, FUNDIR vozes… Será a voz um alicerce basilar da APEM? Já que não podemos mudar o sistema, vamos dar condições para que, aos poucos, se faça mais música na escola e se cante mais nas escolas. Mas que se cante com qualidade, com recursos que promovam as práticas musicais nas várias escolas. A plataforma digital do “Cantar Mais”, por exemplo, centra-se em canções dispostas com recursos pedagógicos para se trabalhar a própria canção. Não é só cantar, é saber mais através de uma canção. A voz, que em princípio toda a gente tem, é o meio mais democrático de fazer música. Toda a gente o transporta. E sabe-se, hoje em dia, que a relação do corpo com a voz permite uma relação mais íntima com a música e uma compreensão facilitada pelo facto de ela primeiro passar pelo corpo. Nestes últimos dois anos fizemos uma nova versão de um concurso que já tinha cinco anos, assente na composição de canções sobre poemas portugueses, à escolha. Agora passámos para as crianças e fizemos ao contrário. Convidámos — e estamos a convidar, já vamos para a terceira edição! — músicos para escreverem uma canção cantável por crianças, com as suas características próprias, mas sem palavras. E depois devolvemos esta canção para o público, para as escolas, para que encham as canções com poesia, com histórias. Convidámos o Mário Laginha para a primeira edição do concurso e tivemos mais de 8 mil crianças a cantar a canção dele. Estão publicadas as letras vencedoras. Agora, nesta edição de 2022, convidámos a Luísa Sobral para fazer a música e tivemos mais de 11 mil crianças a cantar a canção. Foi uma aposta ganha. Neste trabalho de grupo, as crianças, para encontrarem as palavras certas, têm que conhecer a música, têm que a cantar, que a dançar, que a viver!
Considera que esta visão central da composição contemporânea na associação parte do facto de a primeira Presidente da APEM ter sido, ela própria, compositora? A Maria de Lourdes Martins, como compositora, não era reconhecida como merecia. Mas às vezes é preciso tempo para a sociedade reconhecer o trabalho. A ligação dela com o Orff também tem muito a ver com isso, apesar de ela própria dizer que não partilhavam a composição propriamente, mas sim a visão de que a experimentação e a improvisação deviam fazer parte dos processos de ensino e aprendizagem. Isso é que é a grande questão, que ela utilizou também como compositora. Em termos do trabalho da APEM sempre houve esta preocupação com a criação, a par da importante integração dos compositores contemporâneos nos processos de ensino da música. A APEM sempre teve uma forte ligação com os músicos (com o Jorge Peixinho, com a Constança Capedeville), pelo que houve a preocupação de trazer a música dos nossos dias na projecção dos processos de ensino e aprendizagem.
Embora nos importe pensar o futuro, o marco dos 50 anos impele-nos a algumas retrospectivas, já que reviver e homenagear o trabalho da APEM passa também por evocar legados. Algum outro que queira ressalvar neste levantamento? Todas as pessoas que passaram pela APEM criaram um marco importantíssimo. Mas a Graziela Cintra Gomes foi a pessoa que esteve presente durante mais tempo. E foi, de facto, marcante para a APEM, pois fez um trabalho notável, de registo, de arquivo, de documentação. Toda a dinâmica da APEM estava muito concentrada na pessoa dela. E, hoje em dia, o trabalho de refazer o caminho, o histórico… seria bem mais difícil fazê-lo!
E o que nos reserva o futuro desta tão notável associação? Quais os próximos caminhos? O papel de quem esteve e de quem está hoje na APEM é de, forçosamente, pensar no futuro e de deixar algum caminho ou a possibilidade de se construírem caminhos com outras gerações, com as gerações mais novas. E sobre o futuro, eu acho que há tantas possibilidades… Acho que não podemos largar a tecnologia no ensino da música. É algo cada vez mais presente, pelo que temos que integrar as potencialidades da tecnologia tanto na criação musical — e isso já lá vem muito de trás —, quanto nos processos de aprender música. Isso é uma vertente de que os professores (de todas as áreas, mas especificamente de música) não se podem separar. E, portanto, neste campo imenso que é a música na educação, os futuros de uma comunidade de música têm que ser muito diversos, mas têm que ser também articulados. Pode haver aqui um conjunto de sinergias para contribuir para a educação e para a música, fazendo, com isso, um mundo melhor. Outro ponto que eu acho importante a APEM continuar a desenvolver é o papel de divulgação de projectos. Hoje em dia a informação está muito perto de nós, mas é preciso sistematizá-la para bem divulgar. Sendo a APEM um centro de formação contínua de professores, um centro de divulgação e criação de pensamento sobre o ensino e a aprendizagem da música, este papel de dar a conhecer, analisar e reflectir sobre projectos que existem na sociedade é um trabalho de passado, presente e futuro.
Fotografias de Mafalda Baptista
Texto publicado na Glosas n.º 22, p. 66-75.