O complexo alcance do termo performance dificulta a sua delimitação, sendo considerada um fenômeno abrangente da actividade humana. Como refere Schechner, “performance is everywhere”1. O que se designa por arte da performance surge, nos anos 70, da dissidente necessidade criativa de explorar outras formas de comunicação e intercâmbio com a audiência (e sua progressiva diluição), estimulando a sua reflexão, manifestação e participação, implicando a inclusão de diferentes participantes, média, estruturas, conteúdos, durações e espaços. Baseia-se no conceito de criação efémera, manipulação temporal (duração de minutos a horas) e orientação para o processo (como percurso gerador criativo) e – ou –, no caso dos compositores, através de processos com finalidade decisiva sobre questões relativas à altura, harmonia, ritmo, duração, dinâmica… A arte da performance é influenciada não só pelos seus movimentos artísticos mas também pela tradição nativo-americana, culturas extra-europeias, cabaret, café-concerto, teatro-revista, circo, espectáculos de marionetas e fantoches, eventos atléticos, paradas e outras manifestações públicas. No campo de investigação relativo ao presente tema destacam-se dois autores: Roselee Golberg e Michael Nyman2 – o primeiro dos quais nos sugere a seguinte definição: «A obra pode ser apresentada a solo ou em grupo, com iluminação, música ou elementos visuais realizados pelo próprio artista […], ou em colaboração, e apresentada em locais como uma galeria de arte, museu ou até num espaço alternativo, teatro, café, bar ou esquina de rua. Ao contrário do teatro, o performer é o artista, raramente uma personagem […], e o conteúdo poucas vezes segue um enredo tradicional ou narrativa. A performance pode ser uma série de gestos ou teatro visual em grande escala, com duração de alguns minutos a várias horas; pode ser executada apenas uma vez ou várias e repetidas vezes, com ou sem um guião preparado, espontaneamente, improvisada ou ensaiada durante meses.»3.
Como movimentos artísticos destacam-se o futurismo (1909, data do primeiro manifesto), o construtivismo russo (1913, com o Institute o Artistic Culture e Kandinsky); o dadaísmo (com a fundação do Cabaret Voltaire em 1916 por Ball e Hennings, e posterior transferência para a Galerie Dada em 1917); o surrealismo (1924 e 1929, com o primeiro e segundo manifestos por Breton); a Bauhaus como Instituto de Ensino das Artes (1919, por Gropius); e o happening (1952-1959, impulsionado por Cage e Kaprow no Black Mountain College e na New School or Social Research). Destes movimentos, realçam-se aqui os que mais contribuem para a formação da atitude artística de John Cage.
Cage e o Futurismo
O futurismo surge em Paris com a publicação do Manifesto Futurista por Marinetti, incidindo no movimento, mudança, surpresa, novidade, variedade, violência, velocidade, tecnologia: «[…] a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a velocidade. […] Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias […], e combater o moralismo, o feminismo e toda a vileza oportunista e utilitária. […] Nós exaltaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicolores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas […]. É de Itália que nós lançamos pelo mundo este nosso manifesto de violência arrebatadora e incendiária, com o qual fundamos hoje o “Futurismo”, porque queremos libertar este país de sua étida gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários.».
As suas actividades baseiam-se no percurso direccionado para o processo (como percurso gerador criativo), com utilização de variados meios como a pintura, escultura, literatura, música, arquitectura, cerâmica, teatro, lme, design gráfico, industrial, urbano e de interiores, moda, têxteis e gastronomia. As performances seguem um formato com sequências ou partes de material criativo, incluindo paródia, acrobacia, mecanismos, luzes, efeitos de som, apresentação rápida de movimentos ou objectos, remetendo para as performances de cabaret, vaudeville e circo.
Como interveniente futurista influente em John Cage salienta-se Luigi Russolo, com a apologia abolitiva dos sons puros, utilizando produtores de ruído que imitam os sons do mundo exterior (comboios, explosões de motores, barulho das multidões…). Em Cage é clara a sua influência, dentre outras obras, em Bacchanale (1940) 4, 4’33’’ (1952)5, Imaginary Land-scapes I, II, III, IV e V (1939-1952)6 e Music or Amplied Toy Pianos (1960)7.
Algumas das influências fundamentais envolvem o alargamento do campo sonoro com a utilização do piano preparado8, sons/ruídos ambientais e inaudíveis (amplificação), equipamentos electrónicos (gravação, amplificação e edição), técnicas de execução instrumental não ortodoxas9; a justaposição, combinação e simultaneidade de sonoridades e ritmos (sons/ruídos ambientais, electrónicos e instrumentais); e a colagem em ta de vários tipos de material (discurso alado, canto, música instrumental, efeitos electrónicos, sons/ruídos ambientais).
Cage e Dadaísmo e o Surrealismo
O dadaísmo surge em Zurique, liderado por Hugo Ball, Emmy Hennings e associados do Cabaret Voltaire (transferido para a Galerie Dada), com um primeiro manifesto em 1916 e um segundo em 1918, por Tristan Tzara, baseado nas políticas anti-guerra e anti-burguesia e na rejeição do padrão na arte: «a abolição da lógica, que é o meio utilizado pelos impotentes para criar […] [;] cada objecto, todos os objectos, sentimentos, obscuridades, aparições e o confronto preciso de linhas paralelas são armas para a luta […] [;] abolição da memória […], abolição da arqueologia […], abolição dos profetas […], abolição do futuro […], respeitar todos os indivíduos na sua loucura do momento […] [;] um bramido de dores retorcidas, o entrelaçamento dos opostos e de todas as contradições […] e inconsistências: vida.»10.
As suas actividades abarcam as artes visuais, literatura, teatro e desenho gráfico, incluindo também demonstrações, tertúlias e publicações sobre arte (jornais literários), e utilizando várias técnicas como collage, photomontage, assemblage, ready-mades. Influenciado por este movimento, surge em Paris o surrealismo, com a publicação do Manifesto do Surrealismo, definindo esta tendência como «automatismo psíquico puro, pelo qual cada um se propõe expressar, verbalmente, por escrito, ou através de qualquer outra forma, o verdadeiro funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo o controlo exercido pela razão, sem qualquer preocupação estética e moral. […] Baseado na crença de uma realidade superior com certas formas de associação anteriormente negligenciadas, na omnipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento.»11. O Segundo Manifesto do Surrealismo questiona a coerência e localização dos ideais surrealistas, indiciando o desentendimento entre os membros, elogiando os éis apoiantes e denunciando os traidores: «Combatemos […] a indiferença poética, a distração da arte, a pesquisa académica, pura especulação.»12.
Como interveniente dadaísta-surrealista salienta-se Erik Satie, considerado influente na formação da atitude artística de Cage e na criação, dentre outras obras, de Socrate (1945)13, Songbooks (1970)14 e The First Meeting o the Satie Society (1985)15. Cage dedica-lhe, em 1948, um festival 16, no Black Mountain College.
Algumas das influências fundamentais envolvem os conceitos de estrutura definidos em termos de tempo, mencionando Cage que a única ideia estrutural inovadora que surge desde Beethoven (com a harmonia como definidora) encontra-se em Satie e Webern, (durações de tempo e ritmo)17; também de interacção artística disciplinar experimentada com vários artistas de diversas áreas, como na produção de Le Piège de Meduse (1913), de Satie, apresentada no estival atrás referido, envolvendo Cage (piano), Cunningham (na coreografia), De Kooning (na cenografia) e Arthur Penn (na encenação), com acções no palco, combinação de meios e a exploração do jogo absurdo de palavras, disfunções entre diálogos e a antecipação de idealizações relativas ao piano preparado; e ainda de atitude contextual da msica com Musique d’ameublement18, que implicou a transformação da visão do espaço tradicional de concerto e a sua inclusão integrativa no ambiente sonoro ambiental e universal.
Cage e o Happening
O conceito de happening surge nos Estados Unidos da América, com Allan Kaprow, sendo também experienciado por Jim Dine, Claes Oldenburg, Robert Rauschenberg, Roy Lichtenstein, e outros. Segundo Kaprow, é preferível essa noção a nomenclaturas como peça de teatro ou performance, já que defender a espontaneidade é algo que “just happen to happen” 19. Em 1959, na Reuben Gallery, em Nova Iorque, Kaprow apresenta 18 Happenings in 6 Parts, integrando ambientes-espaços, acções, som, luz, com a participação da audiência, intervenções simultâneas de pintores, procissões de performers, leituras em placares, execução instrumental e a vocalização de palavras (uma sílaba), com o nal marcado pelo som de um sino. Posteriormente, referem-se criações como Household (1964) e Soap (1965) sem audiência e com a comparência dos participantes numa reunião preliminar, no primeiro caso para discussão sobre o happening e distribuição das partes, e no segundo para a escolha dos locais apropriados, e Birds (1964), unicamente para participantes.
Kaprow e o terceiro interveniente considerado influente na formação da atitude artística de Cage, sendo Theater Piece No. 1 (1952) a sua primeira experiência relacionada com o happening, concretizada no Black Mountain College. Algumas das influências fundamentais envolvem a indeterminação da performance, revelando-se apenas no momento, sendo este único (de preferência realizado uma única vez); a espontaneidade dos momentos ou eventos, apelando aos vários sentidos (incluindo diversas artes e situações vivenciais), com variedade de fontes, temas, materiais, acções e espaços, envolvendo artistas, performers e a audiência (eliminação do conceito e enveredando para a simbiose entre todos os participantes), e cujos resultados dependem desta conjugação; a ausência de ensaios, guiões (restritos ou com pré-preparação momentos antes), gurinos; a acção-narrativa não linear na sequência dos momentos ou partes ou eventos, sendo as decisões tomadas através de métodos associativos ou processos de chance; e a igualdade entre a arte e vida real sem fronteiras entre estas.
Conclusões
Destacam-se três aspectos. O primeiro refere-se à importância das contribuições dos movimentos artísticos interativos da arte da performance na formação da atitude artística de John Cage, tal como a sua própria experimentação teórico-prática no Black Mountain College e na New School or Social Research no que concerne ao desenvolvimento dos conceitos de chance, indeterminação e interligação dos elementos, materiais, tempo, espaço, corpo e participantes.
O segundo refere-se a importância da actividade artística de Cage como base de aprofundamento da pesquisa para futuros estudos, com intuito delineador de um percurso na área da interactividade disciplinar, que abrange e influência compositores como Mauricio Kagel – teatro instrumental – e Karlheinz Stockhausen – música cénica –, mas também proporcionando a artistas com tendências semelhantes a criação de novos conceitos e modelos, implicando a confluência de linguagens (escrita, verbal-musical, visual, gestual-corporal), a valorização da funcionalidade dos elementos materiais (cenário, adereço, figurino, maquilhagem, luz), dos parâmetros fundamentais (espaço, tempo, corpo) e a relevância singular e coordenada das atitudes do criador, performer (músico, actor, bailarino, …), encenador, coreógrafo, equipa técnica, e a audiência, perspectivando um resultado criativo coeso.
O terceiro refere-se ao interesse que o tema poderia suscitar se inserido em programas curriculares relativos a estudos interactivos disciplinares: na composição musical contemporânea perspectiva-se a elaboração de novos modelos composicionais com desbloqueamento e diluição das barreiras entre as artes.
Urge contribuir para uma percepção sintética destes universos para impulsionar novos estudos relativos à frutuosa interactividade disciplinar. A cultura artística, abrindo caminhos para o futuro, seria enriquecida através da investigação em várias fontes de informação, integradas na lista de referências deste artigo e noutras que possam surgir.
Notas
1 2006, p. 49
2 Golberg estuda a História da Arte da Performance e respectivos movimentos, como futurismo, construtivismo, dada, surrealismo, Bauhaus, living art, geração dos média de 1968-1986, e também o happening, arte conceptual, body art, considerando Cage, Manzoni, Gilbert & George e Laurie Anderson como individualidades influentes no seu desenvolvimento. Nyman envereda pelo estudo da música experimental, distinguindo-a da vanguardista, tal como da função destas práticas na exploração de novas atitudes referentes aos conceitos de obra musical, notação, tempo, e novas perspectivas sobre o acto criativo, o papel do compositor, do intérprete e da audiência.
3 1988, p.8. Tradução livre da autora
4 Para piano preparado com alargamento do campo sonoro e intercâmbio entre sons puros (pure sound) e o ruído (noise sound), expandindo a sua unção (do piano) e transformando-o noutro/s instrumento/s.
5 Para qualquer instrumento ou combinação de instrumentos, com indicações na partitura para o performer não tocar durante a duração da peça, estando à mercê do som/ruído ambiental.
6 Junção em cada peça de diferentes combinações incluindo instrumentos acústicos, objectos (rádio, campainhas, etc.) e mecanismos electrónicos.
7 Tal como no caso do piano preparado, com a possibilidade sons/ruídos, a utilização de microfones para amplicação e altifalantes dispersos na zona da audiência.
8 (modificação do som com objectos introduzidos nas cordas do instrumento ou aplicações electrónicas)
9 extended-techniques
10 Dada Manifesto, 2013. Tradução livre da autora.
11 A Brief Guide to Surrealism, 2013. Tradução livre da autora.
12 Breton, 1969, p.129. Tradução livre da autora.
13 Transcrição para dois pianos da obra de Satie, Socrate (1919, voz e piano ou pequena orquestra).
14 Para um ou mais cantores, consistindo em quatro tipos de peças (canções, canções com electrónica, indicações para uma performance teatral, e indicações para uma performance teatral com electrónica). Os textos são fundamentalmente de Henry Thoreau, mas também de Norman O. Brown, Erik Satie, Marcel Duchamp, Buckminster Fuller, Merce Cunningham e Marshall McLuhan.
15 Em homenagem a Satie, com textos de admiradores do compositor (Henry David Thoreau, James Joyce, Marcel Duchamp, Chris Mann, Marshall McLuhan e John Cage), citações (deste) e selecções do Livro do Génesis, reestruturados por dois programas de computador.
16 Festival dedicado à música de Satie, com conversas prévias a cada concerto, sobrevivendo um texto escrito por Cage, intitulado, posteriormente, Em Defesa de Satie.
17 Shlomowitz, 1999.
18 Em 1949, Cage vai para Paris com intuito de investigar sobre Satie, especialmente a Musique d’ameublement. 19 CARLSON, 2004, p. 105
Referências
BRETON, André, Manifesto of Surrealism, Ann Arbor, University o Michigan
Press, 1969.
CAGE, John, Song Books.
CARLSON, Marvin, “What is Perormance?” in HUXKEY, M.; WITTS, N., The Twentieth-Century Performance Reader, Second Edition, Routledge, 2002.
GOLDBERG, Roselee, Performance Art From Futurism to the Present, First Edition, Thames and Hudson, 1988.
MARINETTI, F.Tommaso, Manifesto futurista.
NYMAN, Michael, Experimental Music, Cage and Beyond, Second Edition, Cambridge University Press, 1999.
KAPROW, Allan, Assemblages, Environments, Happenings.KAPROW, Allan, How To Make a Happening, 1966.
Texto publicado na Glosa nº 9, p. 69-71.
Fotografia: John Cage durante seu concerto de 1966 na abertura da National Arts Foundation em Washington, D.C. Rowland Scherman/Getty Images